terça-feira, 5 de junho de 2012

Saudosismo

Meu parceiro Gabriel cantou a pedra no vlog dele, mas eu vou comentar aqui também: saudosismo. Nossa geração, os nascidos entre 1985 e 1990, somos todos um bando de saudosistas e crianças frustradas por terem deixado a infância para trás. Volta e meia no 9gag aparece um post falando sobre como algum desenho que nós assistíamos quando tínhamos quatro ou cinco anos era maravilhoso, e muito melhor do que tudo que é produzido atualmente, e de tudo que um dia será produzido. Em conversas informais, no pátio do colégio da faculdade, é muito comum que alguém lembre de alguma porcaria que fazíamos quando tínhamos entre nove e dez anos e fale com um certo brilho no olhar, dando a entender que nunca mais, desde que entrou oficialmente para o clube dos adultos, ele se divertira tanto quanto no primeiro dia em que ele pulou no seu Pogobol, jogou no seu PenseBem ou fez seu primeiro ritual satânico com a  faca que vinha dentro do boneco do Fofão.

Meu primeiro sacrifício foi mais ou menos como minha primeira vez, só que com menos sangue.


Não sei se isso é realmente um fenômeno social exclusivo de nossa época, ou se nosso saudosismo ganhou mais destaque do que o saudosismo de nossos pais por que nós temos a internet ao nosso lado para guardar e compartilhar nossas memórias infantis, ao invés de apenas umas fitas cassete vagabundas. Honestamente, eu não sei. Já ouvi meu pai falar sobre as coisas que ele fazia e as histórias que ele lia quando era bem piá, tipo andar a cavalo fingindo que era o Zorro ou remendar a bola Pelé dele com a tecnologia infinitamente inferior dos anos 1960, mas não lembro de em nenhuma ocasião ele ter se juntado com amigos de sua faixa etária para, juntos, fazerem um jogral sobre como Fantomas era o maior herói já concebido por qualquer mente humana.

E você aí achando que o Batman do Adam West era o único herói pançudo.


Talvez existam cinquentões como ele que realmente façam isso (a imagem acima eu achei em um blog que tinha um post sobre o Fantomas - interpretem isso como vocês bem entenderem), mas mesmo que eles de fato existam, ainda serão uma minoria pouco expressiva. Além disso, nossa geração tem muito mais material para sentir saudades. Isto não é um juízo de valor, mas uma constatação de fato - fomos a primeira geração a ser bombardeada com entretenimento 24 horas por dia, com acesso a TV à cabo, pay-per-view, YouTube, Cartoon Network, cinemas 3D, sites pornô, chats, fóruns, iPods, iPhones, iPads, podcasts, sites de jogos em flash e bolhas de sabão.

FUCKIN' BUBBLES!


Talvez isto não signifique que nós sejamos seres humanos melhores ou superiores, mas provavelmente significa que nossos processos cognitivos funcionem de um jeito diferente. Primeiro, temos mais conteúdo para processar e selecionar como sendo relevante ou não. Segundo, este conteúdo muda com muita facilidade e velocidade. Não sei se os programas de TV de 30 ou 40 anos atrás mantinham-se no ar com muita facilidade, mas certamente havia muito menos competição pela nossa atenção, e muito menos preocupação em destacar-se. Tenho a impressão de que parte desse nosso saudosismo seja por que, quando os nossos amados desenhos passavam na TV, nossos adorados brinquedos ainda não estavam empoeirados e nossas músicas favoritas ainda tocavam nas rádios nós estávamos dispersos demais para realmente prestar atenção nelas e aproveitá-las. E hoje, quando as ouvimos outra vez, agora mais maduros, inconscientemente percebemos isto, nos arrependemos e tentamos de certa compensar o "tempo perdido" dizendo para todo mundo como a nossa infância foi fantástica, e que nunca nenhum menino ou menina poderá vivenciar algo tão épico.

 Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2012


Compensamos. Reparem bem nessa palavra, por que ela não foi escolhida por acaso. Ninguém tenta compensar algo bem feito, algo perfeito. Tentamos compensar algo que ficou incompleto, que deixou a desejar. Não sei se meu pai pondera se aproveitou bem a sua infância, se brincou o suficiente de ser o Zorro, por que nunca li os pensamentos dele, mas eu aposto que não, talvez por que ele tenha coisas mais importantes com que ocupar sua mente, como viver aqui e agora. Com toda certeza, quando ele pensa na época em que ele tinha dez anos de idade, ele deve sentir algum tipo de nostalgia, de saudade, porém não o suficiente para fazê-lo criar um blog para catalogar as porcarias que passavam na TV na década de 1960. Não vejo ele tentando compensar nada, por que não há nada para compensar no seu passado. Talvez ele não seja perfeito, mas é o que é, e não há como mudar isso. E se não há como mudar, por que se preocupar?

Exceto ser o Batman. Eu ainda estou tentando consertar este fracasso dos meus pais.

Talvez não tenhamos feito nossa lição de casa, e não tenhamos aprendido o que tínhamos que aprender. Da mesma forma que ficávamos perdidos e aéreos quando éramos crianças, pensando no que íamos fazer quando crescêssemos, hoje ficamos perdidos pensando em como era bom ser criança e assistir desenho e não ter que se preocupar com mais nada. Será que daqui a trinta anos, quando formos respeitáveis senhores e senhoras de cinquenta e tantos anos, vamos olhar para a juventude que hoje vivemos e dizer "é, aquela foi a época pra se ter vinte anos! Essa molecada de hoje não sabe coisa nenhuma!" enquanto postamos links no Facebook para algum vídeo da primeira temporada de Big Brother Brasil?

Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2042


A frase "viva o seu dia como se fosse o último" e suas variações é considerada um dos maiores clichês de nossa cultura, e cada um de nós já deve ter visto pelo menos três filmes do tipo "empresário de sucesso sofre experiência difícil e aprende o que é realmente importante na vida", e automaticamente fazemos algum tipo de piada toda vez que alguém ingenuamente diz que o "aqui e agora é o momento mais importante, por isso se chama de presente". Contudo, será que avacalhamos com esta ideia e a chamamos de clichê justamente por que não compreendemos o que é viver o momento presente? Pessoalmente, sou tão culpado por todo este saudosismo que invade os meios de comunicação quanto qualquer outro membro de minha geração. Eu avidamente clico em todos os links que usem a frase "você está ficando velho" ou "olha a nossa infância" para ver as coisas com que eu brincava e me divertia quinze anos atrás, e mais de uma vez me envolvi em discussões sobre os méritos de "Cavaleiros do Zodíaco" ou como o Kuririn morre a cada quatro episódios de "Dragon Ball Z" - e mais do que isso, me diverti horrores com estas panaquices. Entretanto, quero também acreditar que aprendi alguma coisa nestes últimos quinze anos além dos nomes dos 150 pokémons.

OK - 151 pokémons

O que seria esta coisa que eu espero ter aprendido, ou pelo menos estar aprendendo? Apreciar o aqui e agora, deixar o passado para trás, não me preocupar com o futuro antes que seja necessário e não levar a vida tão a sério. Clichês, não? Talvez. Por outro lado, cada vez mais me convenço de que os valores que nossa cultura nos impôs, aquilo que nos ensinaram como sendo importante e digno de nossa atenção, é mera enganação, jogo de cena, e que são estes chavões, que parecem ridículos justamente por transcenderem a linguagem e as palavras, aquilo que realmente deveríamos procurar viver.

A propósito: talvez eu saiba o nome de mais de 151 pokémons.

domingo, 3 de junho de 2012

Sobre comer carne

Acho que não é novidade pra ninguém, mas eu sou vegetariano. Isto é, eu não como carne. Fiz esta escolha por que não quero compactuar de maneira nenhuma com uma indústria que causa dor e sofrimento para seres vivos e conscientes apenas para satisfazer meu delicado paladar. E é por isso que eu fico especialmente incomodado com um certo argumento que frequentemente as pessoas me dão para justificar o por que elas continuam comendo carne: "eu não conseguiria viver sem".

Quero que fique claro: se você sentar comigo em um restaurante com um bife bem sangrento, eu não vou te fazer cara feia. Eu não vou dizer que você está comendo um cadáver, ou que você também é responsável pela morte de um ser vivo. Posso até pensar todas estas coisas, mas não direi nenhuma delas, por que não quero estragar o seu almoço e, principalmente, por que não quero forçar você a fazer algo que não acredita. O que colocamos em nosso prato é uma escolha ética muito importante, e o que você decide comer ou não deve ser algo que faça sentido para você, e não para mim. Levei pelo menos três anos cheios de dúvidas e recaídas para finalmente virar 100% vegetariano, e não tenho nenhum direito de acelerar o processo de ninguém. Agora, eu sou honesto com você, então, por favor, seja honesto comigo e não invente desculpas esfarrapadas como o argumento do "eu não conseguiria viver sem carne".

Sim, devem existir pessoas no mundo que precisam de carne para viver, seja por questões médicas, seja por que não há mais nada o que comer em sua região. Não estou falando destas pessoas. Paradoxalmente, estas pessoas que realmente precisam de carne para viver nunca usariam este argumento, por que o problema ético de comer ou não comer carne para elas é inexistente ou irrelevante. Estou falando de pessoas que vivem em uma situação financeiramente confortável, possuem boa educação e preocupam-se com problemas morais mas que, por algum motivo que eu não consigo realmente entender, excluíram as considerações alimentares da esfera da ética por que dizem para si mesmos que "bah, não dá pra viver sem carne. É da minha natureza, sabe?"

Quero pegar este argumento e brincar com ele um pouco. Vamos substituir os termos, e ver se muda alguma coisa:

Não conseguiria viver sem fumar crack. Eu sou viciado mesmo, sabe?

Não conseguiria educar meus filhos sem bater neles. É assim que as coisas tem que ser, sabe?

Não conseguiria viver sem estuprar mulheres. Elas tem que obedecer, entende?

Peguei pesado com as comparações, mas por um bom motivo. Todas elas possuem quatro características em comum com o argumento do "não posso viver sem carne." A primeira é que todas elas envolvem uma busca egoísta por benefícios para si, a despeito de se causar sofrimento ou dano para outros seres vivos. O ganho obtido, seja prazer, alívio ou obediência justificam o mal causado. A segunda característica é uma naturalização da própria escolha. Não se parte do princípio que tal comportamento é fruto de uma longa história de aprendizado, uma construção, e que outro comportamento pode ser aprendido para substituí-lo se assim for necessário. Não. Se parte do princípio de que as coisas sempre foram assim e sempre serão: comer carne é da nossa natureza, eu sou um viciado e preciso de crack, crianças precisam obedecer os pais, mulheres devem fazer sexo quando seus maridos assim desejam. Naturalizando a própria escolha, se exclui qualquer possibilidade de consideração ética e, portanto, de mudança, por que é necessariamente a escolha mais ética possível.

A terceira característica é uma conseqüência da segunda: todas as justificativas de certa forma denigrem o ser humano. Tal tipo de argumento desculpa e justifica um comportamento inadequado ou impensado com a exclusão da capacidade humana de mudar a si próprio quando necessário ou desejado. Dizer que "é assim que tem que ser" é basicamente admitir que se é mera marionete na mão de forças superiores, incompreensíveis e incontroláveis, e que não possui força para vencer uma coisa tão banal quanto a satisfação de um prazer tão baixo quanto o paladar.

A quarta e última característica é a desonestidade que vem embutida no seu fatalismo. Talvez seja moralismo da minha parte, especialmente no que diz respeito a comer carne, mas justificar o próprio prazer de forma tão determinista é mais preguiça de mudar um hábito tão incrustrado que limitou as tuas possibilidades existenciais do que uma verdadeira impossibilidade de mudar. "Eu não conseguiria viver sem carne" pode ser um argumento mais suave, diplomático do que simplesmente dizer "como por que gosto e não quero parar", mas é muito mais covarde, por que não expõe francamente o que lhe motiva a manter tudo na mesma.