terça-feira, 5 de junho de 2012

Saudosismo

Meu parceiro Gabriel cantou a pedra no vlog dele, mas eu vou comentar aqui também: saudosismo. Nossa geração, os nascidos entre 1985 e 1990, somos todos um bando de saudosistas e crianças frustradas por terem deixado a infância para trás. Volta e meia no 9gag aparece um post falando sobre como algum desenho que nós assistíamos quando tínhamos quatro ou cinco anos era maravilhoso, e muito melhor do que tudo que é produzido atualmente, e de tudo que um dia será produzido. Em conversas informais, no pátio do colégio da faculdade, é muito comum que alguém lembre de alguma porcaria que fazíamos quando tínhamos entre nove e dez anos e fale com um certo brilho no olhar, dando a entender que nunca mais, desde que entrou oficialmente para o clube dos adultos, ele se divertira tanto quanto no primeiro dia em que ele pulou no seu Pogobol, jogou no seu PenseBem ou fez seu primeiro ritual satânico com a  faca que vinha dentro do boneco do Fofão.

Meu primeiro sacrifício foi mais ou menos como minha primeira vez, só que com menos sangue.


Não sei se isso é realmente um fenômeno social exclusivo de nossa época, ou se nosso saudosismo ganhou mais destaque do que o saudosismo de nossos pais por que nós temos a internet ao nosso lado para guardar e compartilhar nossas memórias infantis, ao invés de apenas umas fitas cassete vagabundas. Honestamente, eu não sei. Já ouvi meu pai falar sobre as coisas que ele fazia e as histórias que ele lia quando era bem piá, tipo andar a cavalo fingindo que era o Zorro ou remendar a bola Pelé dele com a tecnologia infinitamente inferior dos anos 1960, mas não lembro de em nenhuma ocasião ele ter se juntado com amigos de sua faixa etária para, juntos, fazerem um jogral sobre como Fantomas era o maior herói já concebido por qualquer mente humana.

E você aí achando que o Batman do Adam West era o único herói pançudo.


Talvez existam cinquentões como ele que realmente façam isso (a imagem acima eu achei em um blog que tinha um post sobre o Fantomas - interpretem isso como vocês bem entenderem), mas mesmo que eles de fato existam, ainda serão uma minoria pouco expressiva. Além disso, nossa geração tem muito mais material para sentir saudades. Isto não é um juízo de valor, mas uma constatação de fato - fomos a primeira geração a ser bombardeada com entretenimento 24 horas por dia, com acesso a TV à cabo, pay-per-view, YouTube, Cartoon Network, cinemas 3D, sites pornô, chats, fóruns, iPods, iPhones, iPads, podcasts, sites de jogos em flash e bolhas de sabão.

FUCKIN' BUBBLES!


Talvez isto não signifique que nós sejamos seres humanos melhores ou superiores, mas provavelmente significa que nossos processos cognitivos funcionem de um jeito diferente. Primeiro, temos mais conteúdo para processar e selecionar como sendo relevante ou não. Segundo, este conteúdo muda com muita facilidade e velocidade. Não sei se os programas de TV de 30 ou 40 anos atrás mantinham-se no ar com muita facilidade, mas certamente havia muito menos competição pela nossa atenção, e muito menos preocupação em destacar-se. Tenho a impressão de que parte desse nosso saudosismo seja por que, quando os nossos amados desenhos passavam na TV, nossos adorados brinquedos ainda não estavam empoeirados e nossas músicas favoritas ainda tocavam nas rádios nós estávamos dispersos demais para realmente prestar atenção nelas e aproveitá-las. E hoje, quando as ouvimos outra vez, agora mais maduros, inconscientemente percebemos isto, nos arrependemos e tentamos de certa compensar o "tempo perdido" dizendo para todo mundo como a nossa infância foi fantástica, e que nunca nenhum menino ou menina poderá vivenciar algo tão épico.

 Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2012


Compensamos. Reparem bem nessa palavra, por que ela não foi escolhida por acaso. Ninguém tenta compensar algo bem feito, algo perfeito. Tentamos compensar algo que ficou incompleto, que deixou a desejar. Não sei se meu pai pondera se aproveitou bem a sua infância, se brincou o suficiente de ser o Zorro, por que nunca li os pensamentos dele, mas eu aposto que não, talvez por que ele tenha coisas mais importantes com que ocupar sua mente, como viver aqui e agora. Com toda certeza, quando ele pensa na época em que ele tinha dez anos de idade, ele deve sentir algum tipo de nostalgia, de saudade, porém não o suficiente para fazê-lo criar um blog para catalogar as porcarias que passavam na TV na década de 1960. Não vejo ele tentando compensar nada, por que não há nada para compensar no seu passado. Talvez ele não seja perfeito, mas é o que é, e não há como mudar isso. E se não há como mudar, por que se preocupar?

Exceto ser o Batman. Eu ainda estou tentando consertar este fracasso dos meus pais.

Talvez não tenhamos feito nossa lição de casa, e não tenhamos aprendido o que tínhamos que aprender. Da mesma forma que ficávamos perdidos e aéreos quando éramos crianças, pensando no que íamos fazer quando crescêssemos, hoje ficamos perdidos pensando em como era bom ser criança e assistir desenho e não ter que se preocupar com mais nada. Será que daqui a trinta anos, quando formos respeitáveis senhores e senhoras de cinquenta e tantos anos, vamos olhar para a juventude que hoje vivemos e dizer "é, aquela foi a época pra se ter vinte anos! Essa molecada de hoje não sabe coisa nenhuma!" enquanto postamos links no Facebook para algum vídeo da primeira temporada de Big Brother Brasil?

Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2042


A frase "viva o seu dia como se fosse o último" e suas variações é considerada um dos maiores clichês de nossa cultura, e cada um de nós já deve ter visto pelo menos três filmes do tipo "empresário de sucesso sofre experiência difícil e aprende o que é realmente importante na vida", e automaticamente fazemos algum tipo de piada toda vez que alguém ingenuamente diz que o "aqui e agora é o momento mais importante, por isso se chama de presente". Contudo, será que avacalhamos com esta ideia e a chamamos de clichê justamente por que não compreendemos o que é viver o momento presente? Pessoalmente, sou tão culpado por todo este saudosismo que invade os meios de comunicação quanto qualquer outro membro de minha geração. Eu avidamente clico em todos os links que usem a frase "você está ficando velho" ou "olha a nossa infância" para ver as coisas com que eu brincava e me divertia quinze anos atrás, e mais de uma vez me envolvi em discussões sobre os méritos de "Cavaleiros do Zodíaco" ou como o Kuririn morre a cada quatro episódios de "Dragon Ball Z" - e mais do que isso, me diverti horrores com estas panaquices. Entretanto, quero também acreditar que aprendi alguma coisa nestes últimos quinze anos além dos nomes dos 150 pokémons.

OK - 151 pokémons

O que seria esta coisa que eu espero ter aprendido, ou pelo menos estar aprendendo? Apreciar o aqui e agora, deixar o passado para trás, não me preocupar com o futuro antes que seja necessário e não levar a vida tão a sério. Clichês, não? Talvez. Por outro lado, cada vez mais me convenço de que os valores que nossa cultura nos impôs, aquilo que nos ensinaram como sendo importante e digno de nossa atenção, é mera enganação, jogo de cena, e que são estes chavões, que parecem ridículos justamente por transcenderem a linguagem e as palavras, aquilo que realmente deveríamos procurar viver.

A propósito: talvez eu saiba o nome de mais de 151 pokémons.

domingo, 3 de junho de 2012

Sobre comer carne

Acho que não é novidade pra ninguém, mas eu sou vegetariano. Isto é, eu não como carne. Fiz esta escolha por que não quero compactuar de maneira nenhuma com uma indústria que causa dor e sofrimento para seres vivos e conscientes apenas para satisfazer meu delicado paladar. E é por isso que eu fico especialmente incomodado com um certo argumento que frequentemente as pessoas me dão para justificar o por que elas continuam comendo carne: "eu não conseguiria viver sem".

Quero que fique claro: se você sentar comigo em um restaurante com um bife bem sangrento, eu não vou te fazer cara feia. Eu não vou dizer que você está comendo um cadáver, ou que você também é responsável pela morte de um ser vivo. Posso até pensar todas estas coisas, mas não direi nenhuma delas, por que não quero estragar o seu almoço e, principalmente, por que não quero forçar você a fazer algo que não acredita. O que colocamos em nosso prato é uma escolha ética muito importante, e o que você decide comer ou não deve ser algo que faça sentido para você, e não para mim. Levei pelo menos três anos cheios de dúvidas e recaídas para finalmente virar 100% vegetariano, e não tenho nenhum direito de acelerar o processo de ninguém. Agora, eu sou honesto com você, então, por favor, seja honesto comigo e não invente desculpas esfarrapadas como o argumento do "eu não conseguiria viver sem carne".

Sim, devem existir pessoas no mundo que precisam de carne para viver, seja por questões médicas, seja por que não há mais nada o que comer em sua região. Não estou falando destas pessoas. Paradoxalmente, estas pessoas que realmente precisam de carne para viver nunca usariam este argumento, por que o problema ético de comer ou não comer carne para elas é inexistente ou irrelevante. Estou falando de pessoas que vivem em uma situação financeiramente confortável, possuem boa educação e preocupam-se com problemas morais mas que, por algum motivo que eu não consigo realmente entender, excluíram as considerações alimentares da esfera da ética por que dizem para si mesmos que "bah, não dá pra viver sem carne. É da minha natureza, sabe?"

Quero pegar este argumento e brincar com ele um pouco. Vamos substituir os termos, e ver se muda alguma coisa:

Não conseguiria viver sem fumar crack. Eu sou viciado mesmo, sabe?

Não conseguiria educar meus filhos sem bater neles. É assim que as coisas tem que ser, sabe?

Não conseguiria viver sem estuprar mulheres. Elas tem que obedecer, entende?

Peguei pesado com as comparações, mas por um bom motivo. Todas elas possuem quatro características em comum com o argumento do "não posso viver sem carne." A primeira é que todas elas envolvem uma busca egoísta por benefícios para si, a despeito de se causar sofrimento ou dano para outros seres vivos. O ganho obtido, seja prazer, alívio ou obediência justificam o mal causado. A segunda característica é uma naturalização da própria escolha. Não se parte do princípio que tal comportamento é fruto de uma longa história de aprendizado, uma construção, e que outro comportamento pode ser aprendido para substituí-lo se assim for necessário. Não. Se parte do princípio de que as coisas sempre foram assim e sempre serão: comer carne é da nossa natureza, eu sou um viciado e preciso de crack, crianças precisam obedecer os pais, mulheres devem fazer sexo quando seus maridos assim desejam. Naturalizando a própria escolha, se exclui qualquer possibilidade de consideração ética e, portanto, de mudança, por que é necessariamente a escolha mais ética possível.

A terceira característica é uma conseqüência da segunda: todas as justificativas de certa forma denigrem o ser humano. Tal tipo de argumento desculpa e justifica um comportamento inadequado ou impensado com a exclusão da capacidade humana de mudar a si próprio quando necessário ou desejado. Dizer que "é assim que tem que ser" é basicamente admitir que se é mera marionete na mão de forças superiores, incompreensíveis e incontroláveis, e que não possui força para vencer uma coisa tão banal quanto a satisfação de um prazer tão baixo quanto o paladar.

A quarta e última característica é a desonestidade que vem embutida no seu fatalismo. Talvez seja moralismo da minha parte, especialmente no que diz respeito a comer carne, mas justificar o próprio prazer de forma tão determinista é mais preguiça de mudar um hábito tão incrustrado que limitou as tuas possibilidades existenciais do que uma verdadeira impossibilidade de mudar. "Eu não conseguiria viver sem carne" pode ser um argumento mais suave, diplomático do que simplesmente dizer "como por que gosto e não quero parar", mas é muito mais covarde, por que não expõe francamente o que lhe motiva a manter tudo na mesma.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Copyright e Fluxo de Informações

Um dos pilares da nossa sociedade capitalista é a propriedade privada: o que é meu é meu, e o que é seu é seu, mas se você bobear, vai ser meu também, e logo. O objetivo do capitalista é crescer para todos os lados, expandir sua propriedade por todo o mundo, tornar-se dono do universo, e de todos os processos que nele acontecem. Isto aparece de maneira óbvia com os objetos materiais, como fábricas, máquinas, apartamentos e aparelhos eletrônicos, mas ocorre também com o que se convencionou chamar de "propriedade intelectual." Este é um termo particularmente vago, que abrange qualquer coisa que qualquer ser humano possa escrever, desenhar, falar ou registrar eletronicamente. Dizer que só recentemente a propriedade intelectual foi atacada pelo capitalismo seria uma ingenuidade da minha parte, por que a primeira coisa que fazem depois de inventar uma nova tecnologia de informação é descobrir como fazer para ganhar dinheiro com ela. Em nossos dias, porém, este processo está ainda mais gritante, por que acontece com cada vez mais velocidade e intensidade.

Através da internet, produzir conteúdo e compartilhá-lo deixou de ser monopólio de empresas especializadas nisto, como gravadoras de música e emissoras de televisão, e passou a ser uma possibilidade para todos que disponham de um computador e um modem. Esta possibilidade encerra em si uma outra: a de que no futuro eliminemos por completo o trabalho destas empresas especializadas e façamos tudo de maneira direta, sem mediadores e intermediários. O mero sonho de que isto possa acontecer um dia é tão assustador para a maior parte da indústria de propriedade intelectual que elas fizeram (e fazem) um esforço enorme para que leis de copyright como as infames SOPA, PIPA e ACTA, e regulamentar como se compartilha dados na internet. Tais leis,se aprovadas, teriam limitado a troca de informações entre usuários de internet de um modo tão profundo que até mesmo emails e mensagens pessoais poderiam ser investigados por quebra de copyright. A mera tramitação dos projetos de lei no congresso dos Estados Unidos deu direito ao FBI de fechar o Megaupload e prender seu presidente, Kim Dotcom, que morava na Nova Zelândia. Se tivessem sido aprovadas, a maneira como usamos a internet não mudaria radicalmente - morreria. É difícil, e um tanto quanto apelativo, tentar imaginar como seria um mundo onde as leis Anti-Pirataria na Internet tivessem sido aprovadas e postas em prática, mas a prisão de Dotcom indica que seria um grande estado policial, sempre buscando coibir qualquer coisa que violasse os direitos autorais e de lucro das grandes empresas.

Num mundo como este, o que fariam os anarquistas? Pra começo de história, essa cara:


Apesar do fechamento do Megaupload, junto com as restrições autoimpostas de outros sites de hospedagem de arquivos, ter diminuído consideravelmente o compartilhamento de arquivos, não quer dizer que as pessoas pararam de fazê-lo. O Pirate Bay e os milhares sites de torrents foram ameaçados, mas continuaram funcionando, e (tirando os eventuais cagaços que tomamos) parecem que vão continuar funcionando por muito mais tempo.

Um aspecto central de todos os governos modernos é que seu poder se baseia quase que exclusivamente em coerção: punir quem age contra os interesses do Estado, e ameaçar com possíveis punições aqueles que pensam em agir contra os interesses do Estado. A curto prazo, é uma estratégia eficaz, por que punições severas e ameaças graves inibem todo e qualquer comportamento indesejado. Por exemplo, a prisão de Kim Dotcom realmente fez com que o Megaupload parasse de funcionar, e de quebra ainda assustou outros os donos e administradores de outros sites parecidos. Entretanto, a longo prazo a coerção é um tiro no pé por que sempre suas vítimas sempre encontram uma maneira de contorná-la, obrigando quem coibe a aumentar suas punições e ameaças cada vez mais para continuar sendo "efetivo", até que o sistema entre em colapso. Como diz um ditado paraguaio: "hecha la ley, hecha la trampa" (feita a lei, feita a trapaça).

E para um anarquista que vive nestes tempos loucos, a internet é a melhor maneira de obter informações. Entretanto, para que ela seja realmente anarquista, e realmente eficaz como fonte de conhecimento, ela depende da colaboração espontânea e até certo ponto desinteressada (de uma perspectiva capitalista, pelo menos) de muitas pessoas e, principalmente, a sua própria colaboração espontânea e desinteressada. Muitas pessoas compartilham fotos, textos, livros, link, músicas e muitas outras coisas. Mas, se todas as pessoas que disto se beneficiam se limitarem a fazerem o download e deixarem seus novos arquivos bem guardados em seus computadores, sem os repassarem adiante de algum jeito ou de outro, a internet não teria tido o impacto que têm atualmente em nossas vidas. Seria, no máximo, uma moda passageira, como foram os tamagochi e os Menudos, sem nenhum impacto ou consequencia.

O fato dela ser tão importante e presente em todas as nossas atividades é, penso eu, por que ela potencializou práticas muito antigas de apoio mútuo, e serviu para agrupar e aproximar pessoas em torno de objetivos e gostos em comum (ainda que ela possa ser usada também para fazer o oposto). Na subcultura anarquista, sempre foi muito comum a troca de informações. Como falei em um texto mais antigo aqui do blog, informação é poder, e uma sociedade igualitária exige tanto uma distribuição equalitária tanto dos bens materiais, quanto dos bens simbólicos. Por isso, os anarquistas sempre teceram redes de troca de conhecimentos, fazendo empréstimos de livros, revistas, jornais e até mesmo fofocas, mitos, histórias e mentiras deslavadas. Antes da internet, esta troca simbólica era muito mais concreta, e por isso muito mais demorada. Além disso, era muito mais vulnerável à censura. No livro "História das Idéias e Movimentos Anarquistas", de George Woodcock, fica bem óbvio quanto interesse os governos e classes dominantes tinham em proibir a circulação de panfletos libertários e revolucionários de maneira geral.


 Hoje, tanto por causa das mudanças na relação entre população e Estado, bem como nas mudanças tecnológicas como o surgimento da internet e seus muitos acessórios, não é possível (pelo menos na nossa sociedade ocidental) censurar na cara dura. É preciso inventar alguma desculpa, dizer que é para a segurança da sociedade, fazer uma campanha terrorista mostrando todos os perigos  que a publicação de tais informações carregam consigo (especialmente contra as crianças), ou usar algum argumento econômico bastante duvidoso de que tais práticas estão ferindo os lucros das grandes empresas e, portanto, toda a sociedade. Frente a estes argumentos, é importante pensar em quem o Governo quer proteger: a população ou os grandes proprietários? Não quero dar nenhum spoiler, mas vou dar uma dica - nós não somos importantes para o Estado.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Mais sobre aborto

Já que meu texto anterior foi sobre o aborto de anencéfalos, acho que preciso falar do tema mais amplo, que é o aborto em si. Como eu disse anteriormente, a decisão do STF foi, sim, uma conquista, mas uma conquista mirrada e pouco ousada, por que abortar fetos incapazes de sobreviver por mais de uma semana não deveria causar mais desconforto do que extrair um tumor maligno. O aborto de fetos biologicamente viáveis, por outro lado, é um problema ético, por que não há consenso sobre a conduta correta, e todas as alternativas envolvem riscos e prejuízos.

Em discussões éticas, penso que a melhor postura é ser claro e honesto, dizendo diretamente o que se pensa. Em relação ao aborto, tenho duas opiniões. A primeira é que eu acho o aborto em si uma coisa horrorosa. A segunda é que eu acho que o aborto deve ser legalizado. "Espera" você que está lendo este texto agora deve estar exclamando. "Como é que alguém que defende a clareza tem opiniões tão divergentes sobre o mesmo assunto? Tu não está sendo incoerente em tuas posições?" Penso que não. Para ser franco, tenho a impressão de que todos os defensores da legalização do aborto possuem estas mesmas opiniões, inclusive as feministas.

Apesar da pieguice do que eu vou dizer agora, a gravidez é de fato um "ato sagrado", pois é assim que geramos novas vidas. Não há como manter-se indiferente a isto. Carregar uma vida dentro de si é uma responsabilidade muito séria, e não deve ser assumida sem comprometimento, sem desejo, sem preparo. Porém, acontece muito frequentemente o exato oposto - mulheres engravidando sem desejo algum de serem mães, seja por acidente, como uma camisinha furada, descuido, como esquecer de tomar a pílula anticoncepcional, ou alguma tragédia, como o estupro. Em todas estas situações, as mulheres têm o direito de decidirem se querem levar a gestação à termo, ou se não estão preparadas para terem uma criança, não importa o motivo pelo qual engravidaram sem querer. Correm no Facebook muitas mensagens dizendo coisas do tipo "quem mandou não se cuidar? Agora tem que arcar com as consequencias!" como se engravidar por acidente fosse algo como derrubar refrigerante no tapete, que sujou tem que limpar. É um pensamento muito limitado, por que, depois que a gravidez acabar, não vai ser como o tapete, que vai estar limpo e (com sorte) sem mancha nenhuma: vai ter um bebê, cheio de necessidades, nas mãos de uma mãe que nunca quis ser mãe. Pode ser que ela aprenda a amar a criança, e cuide bem dela, mas e se isso não acontecer, como é que fica? Sim, a criança poderia ser adotada por uma família amorosa. Porém, até onde eu sei, já existem muitas outras crianças aqui no Brasil esperando serem adotadas. Por que colocar mais uma nessa lista de espera? Por que colocar mais uma criatura inocente para sofrer no mundo? Para fazer a mãe "arcar com as consequencias"? Por que Deus quer?

Ter um filho é uma das coisas mais sérias que se pode fazer, e mesmo as mulheres que não desejam engravidar concordam com isto. Na verdade, é justamente por saberem que é algo grave que elas optam por não ter filhos. E elas devem ter seu direito de escolha amparado pela lei, independente delas terem engravidado por descuido ou não. O aborto não é a única ferramenta disponível para ajudar as mulheres a não engravidarem, mas apenas o último recurso caso tudo mais falhe. Existem as pílulas anticoncepcionais, as pílulas do dia seguinte, os preservativos, dispositivos intrauterinos, e mais um monte de outras opções seguras. Atualmente, como o aborto é considerado crime, a última alternativa de mulheres que engravidaram e que não querem ser mães são ou clínicas de aborto clandestinas, ou soluções mais caseiras mesmo, como chás abortivos ou as "boas e velhas" agulhas de crochê. Não precisa ser residente em Medicina Interna pra saber que estas alternativas populares não são exatamente as mais seguras, e que anualmente milhares de mulheres morrem por causa delas. O aborto legalizado, feito com higiene e segurança em hospitais de qualidade, não seria para fazer "Festivais do Aborto", nem encorajariam mulheres a engravidar só por que "agora eu posso abortar quando eu quiser." Da mesma forma que a gravidez, o aborto também é uma decisão muito grave, e dificilmente será feita de forma inconsequente.

O aborto já é uma realidade agora, e sua prática, ao invés de ser combatida, deve ser legalizada e regulamentada, para evitar a morte de mulheres fazendo abortos inseguros, o nascimento de crianças com deformidade por causa de abortos mal feitos, e o sofrimento de crianças que não foram desejadas. Ele não deve ser a única alternativa para casos de gravidez acidental ou indesejada: deve ser feito, por exemplo, acompanhamento psicológico para mulheres que engravidaram por causa de estupro, e a decisão de abortar ou não deve ser muito bem discutida. Entretanto, a decisão final deve ser sempre da mulher, seja ela qual for. Qualquer política pública que não envolva isto será, no máximo, um forçar a mulher fazer algo que não quer, com um verniz humanitário.

sábado, 14 de abril de 2012

Aborto, Anencéfalos e Mulheres

Nos últimos tempos, tenho desenvolvido um interesse crescente por um tema que, antigamente, eu simplesmente ignorava: feminismo. Por um misto de preguiça, desconhecimento e preconceito, achava que o feminismo era apenas um tipo organizado de ódio aos homens, um movimento tão preconceituoso quanto qualquer grupo neonazista. Porém, quando comecei a conviver com feministas na universidade, e a me dar ao trabalho de estudar um pouco a respeito, percebi que o feminismo é a crença de que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, e a vontade para tornar esta crença realidade. Muita gente realmente acredita que as mulheres são iguais aos homens, que merecem tratamento igualitário e sem preconceito. Entretanto, também acreditam que não há nada por ser feito - a batalha já está ganha, as mulheres já são iguais aos homens em direitos, não vê quantas mulheres ocupam cargos de chefia em empresas importantes? É neste ponto que as feministas chamam a atenção para si, por que, embora muitos progressos tenham sido conquistados pelos direitos das mulheres, estas conquistas de maneira geral beneficiam apenas as classes econômicas mais elevadas, e não são tão fenomenais quanto queremos acreditar. Enquanto pensamos que vivemos em uma sociedade igualitária, todos os dias milhares de mulheressão agredidas, estupradas e mortas, muitas vezes pelos próprios maridos ou namorados, que recebem da sociedade a mensagem de que suas esposas não são suas companheiras, mas suas propriedades, e que podem fazer o que bem entendem com elas, quando bem entendem. E ao invés de causar horror, isto é tratado como se fosse absolutamente normal, por que ela usou uma saia muito curta, saiu da linha e foi desaforada, pulou a cerca.

Este pensamento também se aplica à gravidez e ao aborto. É no corpo feminino que os novos seres humanos são gerados, e é sem exagero que digo que este é o ponto mais importante de toda e qualquer sociedade de todos os tempos, em todos os cantos do mundo. Se não for possível criar mais membros de nossa cultura, como perpetuá-la? É uma tremenda responsabilidade ter um filho, e, apesar de toda esta responsabilidade, as mulheres não têm quase nenhuma liberdade para decidir se realmente desejam assumi-la. Por muito tempo, elas foram tratadas como fábricas de bebês, que devem parir um novo herdeiro por ano, para aumentar o patrimônio de seu dono, o marido. Colocar as coisas desta maneira é chocante, e respiramos com alívio ao pensarmos "ainda bem que não é mais assim." Bom, nem tanto. Até dois dias atrás, era proibido a realização do aborto de bebês anencéfalos, isto é, que se formam sem o crânio dentro do útero. Não apenas era proibido, como era considerado crime. Para evitar uma gravidez de alto risco, capaz de matar a mulher e causar seqüelas psicológicas graves, tanto mulheres quanto profissionais da saúde precisavam agir fora da lei, e correr o risco de serem presos. E, mesmo que o risco de ir para a prisão não fosse tão grande assim, ainda havia a certeza do estigma de ter feito um aborto.

Quando foi anunciado que o direito de fazer aborto de fetos anencéfalos seria decidido pelo Supremo Tribunal Federal, organizações religiosas e tradicionais se uniram, e levantaram bandeiras dizendo "defender a vida" por que crianças anencéfalas também têm direitos. No Facebook, e em diversas outras redes sociais, várias imagens e memes foram compartilhados defendendo a "vida" destas crianças, atacando as mulheres que fizeram aborto e quem quer que defendesse este direito. Em todas estas defesas da vida, se partia do pressuposto de que a mulher deve, sempre, não importam as circunstâncias, levar sua gravidez até o final, mesmo que isto a mate ou a coloque em risco de vida. É o dever dela, dado por Deus, e que portanto deve ser respeitado. Se ela sente medo, se ela não quer, se o bebê for incapaz de viver mais do que uma semana, ah, isso é irrelevante.

Por isso, apesar de ter sido uma grande conquista o direito de realizar aborto de fetos anencéfalos, ainda é uma conquista muito pequena. É como conquistar o direito de fazer operações para remover tumores malignos do útero, ou de ter um atendimento em saúde decente, ou de não apanhar do marido. É algo que consideraríamos óbvio, e não uma questão polêmica. Mesmo assim, a decisão do STF virou assunto de notícia, e foi transmitido ao vivo para todo o Brasil, como se fosse jogo da Copa do Mundo. As mulheres ainda são cidadãs de segunda classe, e qualquer movimento para mudar esta situação é vista como revolucionária, fantástica ou inimaginável.

Foi uma vitória triste, mas uma vitória mesmo assim, e merece ser comemorada. Não quer dizer que devemos nos acomodar, e sim nos esforçarmos ainda mais para que a injustiça contra as mulheres diminua e desapareça. Esta não é uma luta meramente feminina, mas de todos nós.

sábado, 17 de março de 2012

Ação, Inação e Meditação

A língua inglesa possui algumas expressões que, apesar de significarem coisas que não são estranhas a nós falantes do português, por assumirem uma forma diferente da nossa, e portanto com um toque de estranheza, estimulam em nós reflexões diferentes daquelas que faríamos se as ouvíssemos em nossa língua materna.

O termo que capturou minha imaginação hoje foi "Ebb and Flow." Numa tradução grosseira e pouco inspirada, ela significa "maré alta e maré baixa". Entretanto, como o inglês tem uma longa história de autores que exploram ao máximo sua capacidade de expressar ideias através de imagens e metáforas de maneiras instigantes, "Ebb and Flow" é frequentemente usado para descrever os altos e baixos da vida - a nossa alternância entre euforia e depressão, abundância e pobreza, paixão e apatia, festa e solidão, ação intensa e pasmaceira.

Do mesmo modo que a vida alterna entre vales e montanhas, nós também variamos a maneira como vemos estes momentos. Às vezes, vemos os momentos de grande intensidade e força como oportunidades únicas, e como nadadores audazes, nos atiramos ao mar para nadar em plena noite de tempestade. Porém, em outro momento, às vezes imediatamente após termos nos atirado apaixonadamente em águas revoltas para conquistar a glória, sentimos a intensidade como cruel em nosso corpo, e a força insuportável para nossa mente. Então, passamos a sonhar com um refúgio para nossas almas abatidas, uma grande planície ensolarada, com campos de trigo a perder de vista e uma pequena casa de madeira no meio de tudo, onde o calor do fogão à lenha e doses generosas de comida caseira e descanso curariam nossas feridas mais profundas. Desfrutamos desta paz e serenidade, mas apenas até o momento em que começamos a sentir o calor do fogão como opressivo, a comida sem gosto e a paz e serenidade que antes tanto desejávamos como tédio e pasmaceira, e nossos olhos se tornam inquietos na busca de um cavalo ágil e feroz que nos leve o quanto antes até os mesmos mares que antes nos assustaram.

Nós, seres humanos, também temos nosso "Ebb and Flow", e isso não seria um problema, se não nos desviasse tantas vezes e com tanta intensidade de nossos valores mais amados. Queremos nos tornar bons profissionais, mas estudar é chato e sair todas as noites não; queremos ser bons colegas, bons amigos, bons companheiros, mas o sarcasmo vem mais fácil para a ponta da língua do que a compaixão; queremos ser fortes e velozes, mas o sofá da sala e suas cobertas quentinhas é muito mais convidativo do que a pista de corrida e a academia. Mais vezes do que queremos admitir, nós não temos a menor escolha sobre nossos próprios atos. Em seu livro "A Conquista da Mente", o professor de meditação indiano Eknath Easwaran conta que viu em um pedaço de madeira sendo jogado para lá e para cá pelas ondas de um mar encapelado a metáfora perfeita para o ser humano que não disciplinou a sua vontade - uma hora, as águas nos jogam em terra firme, e ficamos ali, parados, como se quiséssemos dizer "eu quero estar aqui, por que a areia é fofa e agradável, enquanto que o oceano é salgado e frio. Não quero mais nada lá!"; cinco minutos depois, quando elas nos puxam de volta para seu meio, nos vemos dando outra explicação "mudei de idéia, sabe? A areia é muito parada, chata, não me deixa expressar meu verdadeiro potencial. O oceano é empolgante, e é nele que eu vou nadar!" E assim, seguimos nossa vida, fazendo muito e agindo pouco, buscando sempre e encontrando nada no final.

A natureza humana é dupla, por que ao mesmo tempo em que precisamos de descanso e conforto, precisamos de ação e aventura. Nosso maior problema não é essa duplicidade aparentemente contraditória; nosso maior problema, na verdade, é pensar que aquilo que queremos é aquilo de que necessitamos. Para um indivíduo disciplinado, o querer e o precisar se sobrepõe de maneira quase perfeita. Para a maioria de nós, entretanto, que cresceu buscando o prazer e evitando o desprazer sem nenhuma reflexão sobre as consequencias de nosso comportamento, confundimos tudo, buscando coisas que nos fazem mal por que queremos o prazer a elas associado, e evitando as coisas que precisamos por que não queremos o desconforto que vem com elas. A curto prazo, sentimos euforia, mas a longo prazo nos sentimos vazios.

No mesmo dia em que viu aquele pedaço de madeira sendo jogado pela água e pelo vento como um brinquedo barato, Eknath viu outra cena que estimulou sua imaginação e que também virou uma lição de meditação em "A Conquista da Mente". Mais ao fundo no mar, ele viu dois meninos, um mais novo e outro mais velho, em cima de pranchas, tentando surfar as poderosas ondas da tempestade. O mais novo era um tanto quanto inexperiente, e volta e meia tomava uns caldos. O mais velho, porém, sabia o que estava fazendo, e quando menos se esperava, estava em pé sobre sua prancha, riscando velozmente o mar e usando a sua fúria como sua fonte de energia. Para Eknath, a conquista da mente é exatamente isto - domar as enormes forças selvagens que temos dentro de nós para nos levar adiante na vida. Tal como no surf, na meditação precisamos adentrar o mar do nosso inconsciente, sentar em nossas pranchas e esperar o momento certo de nos atirarmos em uma onda que nos levará para a frente. No começo, não sabemos diferenciar as ondas boas daquelas que não darão em nada, ou que nos jogarão para qualquer lado como um boneco de posto de gasolina; tomamos muitos caldos, mas, se depois de cada um deles, insistirmos em tentarmos mais uma vez, acabamos aprendendo a surfar cada vez melhor. Precisamos, também, saber quando sair do mar e voltar para casa, por que embora a meditação, tal como o surfe praticado conscientemente, nos ensine lições preciosas, é na agitação da vida diária que devemos aplicá-las.

Para um meditador experiente, como o próprio Eknath, não há diferença radical entre o repouso e a ação - sempre se está em repouso na ação, e em ação durante o repouso. Mantém-se a serenidade interior mesmo na maior das tempestades da vida, e treinando e se preparando nos momentos mais tranquilos. Quem adquire esta habilidade consegue focar sua atenção sem hesitação, faz o que precisa ser feito e atinge os objetivos mais distantes, honrando aqueles valores que um dia escolheu seguir.

E é por isso que hoje, ao contrário de seguir a minha rotina e ficar na inércia em casa, vou me arrumar, sair de casa e ver uns amigos na Cidade Baixa. A meditação é um processo constante, que deve ser praticado em todos os momentos da vida.

E como bônus, aqui vai a trilha sonora que embalou a escrita deste post: The Tragic Prince - Castlevania Symphony of the Night Soundtrack.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Radical e Dogmático

Somos criaturas de linguagem, e vivemos entre palavras, cujos significados se perdem ou se modificam sem que nos demos por conta. Por isso, para mantermos a nossa clareza de julgamento, é necessário que revisemos estes significados de tempos em tempos, pois algumas palavras bem definidas podem esclarecer muitas coisas, e melhor orientar nossa conduta.

Quando alguém usa o termo "radical", dificilmente se refere a uma coisa boa. A "ala radical do PT" a que continua sendo de esquerda, os "muçulmanos radicais" e as "feministas radicais" todos tem uma coisa em comum: são vistos como agressivos, exagerados e inflexíveis, pelo menos por quem os define como radicais. Este adjetivo é usado para descrever indivíduos ou grupos que não apenas exageram, como também não querem deixar de exagerar de jeito nenhum, por que são eles que estão certos.

Entretanto, quando se procura pela palavra no dicionário (eu usei o Michaelis Virtual) o que se encontra é o seguinte:

1 Pertencente ou relativo à raiz.
2 Que parte ou provém da raiz.
3 Relativo à base, ao fundamento, à origem de qualquer coisa; fundamental.
4 Completo: Cura radical.
5 Que pretende reformas absolutas em política.

Nenhuma das definições oferecidas por este dicionário se enquadram naquelas que descrevi anteriormente. Por que? Não posso garantir com certeza, mas defendo a hipótese de que a palavra "radical", ao longo do tempo, teve seu significado primordial esquecido, e, por uma série de fatores históricos, como o surgimento de muitos grupos político-religiosos radicais violentos, passou a ser usado em outro contexto verbal. Por isso, quando hoje alguém te chama de radical, é por que esta pessoa provavelmente considera as tuas idéias, sentimentos e atitudes perigosamente exagerados, e que tu precisa diminuir a intensidade deles. Será mesmo? Todo radicalismo deve ser necessariamente combatido? Antes de responder esta pergunta, faço outra: a palavra radical é a mais adequada para descrever este tipo de pensamentos, sentimentos e comportamentos?

Vamos considerar outra palavra que também é usada para descrever condutas socialmente mal vistas - dogmático:

1 Relativo a dogma.
2 Conforme a um dogma.
3 Decisivo.
4 Que se pretende impor com autoridade; autoritário, sentencioso.
5 Pedantesco.

Comparando as definições das duas palavras, ficamos com a clara impressão de que, se quisermos descrever um grupo ou indivíduo conhecido por suas tendências terroristas, é linguisticamente mais adequado associá-lo a um adjetivo que o caracteriza como "pedantesco" e que "busca se impor com autoridade". Entretanto, não me parece inadequado continuar a descrevê-los como radicais, visto que eles também buscam reformas absolutas e mudanças completas em algum aspecto da sociedade. Então, faço uma terceira pergunta: pode uma só dessas palavras absorver o significado da outra?

Minha resposta agora é clara: não. Apesar de frequentemente as associarmos na vida real, elas descrevem aspectos diferentes do comportamento. O radicalismo implica em ir até a raiz de um problema, levar uma crença ou opinião até à sua conclusão lógica, enquanto que o dogmatismo se refere a considerar uma idéia como correta independente do que dizem os fatos, e tentar usá-la em mais situações do que ela poderia ser útil (além, é claro, de tentar impô-la a outras pessoas). Dentro desta perspectiva que aqui apresentei, ser radical não é um problema: pelo contrário, o problema maior que enfrentamos atualmente é a falta de radicalidade das pessoas, que acreditam em ideais de justiça, verdade e bondade, mas que não os realizam, não os levam a bom termo por que fazê-lo seria por demais desconfortável e incômodo. Sim, os terroristas são radicais, já que estão dispostos a explodir meio mundo por causa de suas crenças. Contudo, eles também são dogmáticos, e não aceitam a possibilidade de acreditarem em algo que esteja errado. É seu dogmatismo que torna seu radicalismo perigoso.

Se fossemos mais radicais - nos dispusessemos mais a correr riscos, a testar nossas idéias e levá-las até suas últimas conseqüências - e ao mesmo tempo temperarmos nosso dogmatismo natural com com generosas doses de tolerância, compreensão e empirísmo (deixar-se modificar pela experiência), talvez nosso mundo seria um lugar mais agradável de se viver, por que viveríamos muito mais de acordo com nossos valores mais profundos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Blogs e Produção de Conteúdo

No post de ontem, falei sobre a necessidade de mantermos a informação circulando livremente para que possamos criar uma sociedade mais livre. Falei um pouco sobre blogs, e o papel que andam cumprindo de quebrar o monopólio da Mídia Tradicional. Após ter publicado o texto anterior, percebi que há muito mais a ser dito sobre este assunto.

Antes de mais nada, é necessário dizer que, embora eu tenha falado em blogs (e tenha até colocado o termo no título desse texto), eles são apenas parte de um fenômeno mais amplo, que é conhecido por Conteúdo Gerado por Usuários (do inglês User Generated Content - UGC). UGC, de maneira geral, é todo conteúdo original produzido por pessoas que não estão diretamente ligadas à Mídia Tradicional, através de sites pessoais, vídeos, blogs, comentários em sites alheios, o diabo (quem tiver interesse, a Wikipedia tem um artigo sobre isso). Onde o UGC começa e onde ele termina não é muito claro para mim, já que é possível um jornalista contratado pela Zero Hora ter um blog pessoal, ou companhias mais tradicionais podem usar algum tipo de recurso UGC para interagir com seu público alvo. Ainda assim, o fenômeno é bastante claro, e pode ser resumido da seguinte forma: cada vez mais pessoas têm acesso direto aos meios de comunicação, sem a necessidade de algum mediador, como jornais, revistas ou emissoras de televisão.

Isto tem uma série de efeitos. O primeiro, do qual eu já falei no texto anterior, é a quebra do monopólio da informação. Como mais e mais pessoas estão compartilhando seus pontos de vista sobre os fatos importantes, não precisamos mais acreditar no que a Globo, a Record ou a CNN nos dizem. O caso da desocupação do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, é um bom exemplo disso. Enquanto que a revista Veja publica um artigo escrito por um senador do PSDB afirmando que tudo ocorreu dentro dos conformes, sem nenhuma morte ou violência, milhares de blogs e perfis no Facebook divulgam fotos e informes em primeira mão dos crimes cometidos pela Polícia Militar, como o assassinato de uma criança de um ano, a agressão gratuita contra jornalistas e partidários da esquerda, e a prisão ilegal de deputados e senadores ligados à causa dos direitos humanos que lá foram investigar o que estava acontecendo. Quem está falando a verdade aqui? Em última análise, eu não tenho como saber com certeza, por que não estive em Pinheirinho, mas não preciso aceitar a versão da Veja como a última palavra, e escolher em quem eu acredito, baseado em considerações racionais (por exemplo: será que a Veja teria algo a ganhar ao defender as causas do PSDB e atacar os partidos de esquerda, especialmente o PT? Muito provavelmente, para ficar nos eufemismos).

Há, contudo, outros efeitos do UGC que eu não discuti no post anterior. O primeiro deles é que só por que aumentou a quantidade de conteúdo disponível não quer dizer que este conteúdo seja de boa qualidade. É a famosa Lei de Sturgeon, que afirma que "90% de tudo que já foi feito é porcaria." Essa lei se aplica aos blogs, vlogs e tudo o mais que está sendo produzido por usuários da internet. Deve-se levar em conta que estes novos produtores de conteúdo não são profissionais da área. Como eu, ganham seu dinheiro trabalhando em alguma coisa não relacionada à mídia, e usam seu tempo ocioso para escrever um texto ou gravar um vídeo discutindo algum assunto do seu interesse. Eles não são pagos para isso. Aliás, é razoável dizer que eles precisam pagar para produzir conteúdo, seja através da conta da internet, seja utilizando um tempo que poderia ser empregado trabalhando para ganhar mais dinheiro. Neste caso, a Mídia Tradicional tem uma vantagem, que é a de contar com profissionais dedicados exclusivamente a produzir conteúdo, treinados e pagos para investigar, pesquisar, escrever e editar informações. Isto não significa que o conteúdo produzido pelos jornais e mídias tradicionais seja de melhor qualidade do que aquele gerado por usuários (as milhares de gafes que aparecem em sites profissionais como o G1 que o Cardoso adora cutucar são prova disso), mas que ele é feito em melhores condições, o que aumenta a probabilidade de ser de melhor qualidade, ou de ser mais amplamente distribuído.

Penso que ainda não existe nenhum blog que possa competir em influência com a Veja ou a Zero Hora principalmente por isso. Entretanto, também tenho a impressão de que a influência gerada pelo UGC é diferente daquela exercida pela velha mídia. Em primeiro lugar, ela é muito mais quantitativa do que qualitativa. Quando leio uma reportagem da Veja ou qualquer outra revista, é o nome dela, a "grife", que me diz que estou lendo informação de boa qualidade (ou não, já que é da Veja que estamos falando). Nas redes sociais, penso que a quantidade de pessoas compartilhando uma notícia é bastante importante, por que mostra o "buzz", ou a mobilização gerada pela notícia. Em segundo lugar, ela é muito mais pessoal e próxima. Aquilo que eu sei sobre o caso Pinheirinho eu não li na Veja: recebi de amigos e conhecidos, pessoas próximas, que conheço pessoalmente e em quem confio. Posso conhecer o nome de um ou dois jornalistas contratados pela Zero Hora ou pelo Pioneiro, e até mesmo ser capaz de identificar o estilo deles de tanto que li seus textos, mas continua sendo uma relação bastante impessoal e distante. Então, se minhas hipóteses estiverem corretas, não é possível, nem desejável, que um único blog se torne tão influente quanto uma revista de grande porte, por que então perderia sua característica pessoal e humana, e se tornaria apenas uma revista virtual. Entretanto, posso estar equivocado, e um site mantido por usuários, e não por profissionais da informação, se mantenha pessoal e próximo como a maioria dos blogs, mas exerça uma influência grande o bastante para ameaçar a grande mídia. Não posso citar nenhum exemplo disto até agora, mas portais de entretenimento como o Channel Awesome estão, penso eu, bastante próximos disto.

EDIÇÃO: Encontrei um texto do Cardoso que merece ser compartilhado aqui - "Cazaquistão e o oposto do sofativismo." É uma ótima leitura, e um ótimo exemplo do que falei no post anterior.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Informação e Anarquismo

Todas as culturas humanas, sem exceção, dependem da transmissão de informação. Como não podemos depender exclusivamente dos nossos instintos para sobreviver, o conhecimento acumulado ao longo das gerações, bem como aquele que está sendo descoberto e testado aqui e agora, é extremamente valioso. Não quero me alongar muito nesse ponto, mas, para mostrar o quanto isso é verdadeiro, olhe ao seu redor e pense: quais destes objetos que eu uso não foram fruto da troca de informação entre seres humanos? Os livros que você lê, a cadeira em que você se senta, o computador que você usa e até mesmo a construção que você habita são todos frutos do treinamento de alguém, que não seria possível se não fosse nossa capacidade de acumular e transmitir informação.

Então, quem detém os meios de propagação possui um poder bastante considerável. Os melhores exemplos disto são as universidades, que educam a "elite intelectual" de nossa sociedade, e as empresas de comunicação. Quem estiver de bem com estas instituições, está de bem com o poder estabelecido - ganha títulos de Doutor Honoris Causa, é chamado para dar sua opinião de especialista no Fantástico, maiores e melhores propostas de emprego, mais dinheiro e mais influência. Por outro lado, se você está de mal com essas instituições, pior pra você.

Sabendo que a distribuição da informação pode fazer qualquer pessoa ou projeto progredir ou afundar, sempre foi do interesse daqueles que buscam o poder controlar quais informações podem ser divulgadas para o público ou não. Isto fica óbvio quando olhamos de perto as práticas de qualquer ditadura moderna, e vemos que elas gastam uma energia considerável para manter a censura forte, e os jornais estatais como a única fonte de notícias para sua população. Para estados totalitários, qualquer informação dissonante da oficial é uma ameaça, e sua propagação deve ser impedida a qualquer custo. De cada acontecimento, só pode existir uma versão, a do governo, A Verdade, sendo todo o resto classificado como "propaganda subversiva", "mentira de comunistas" ou "lavagem cerebral". Por isso, é do interesse dos governantes ter uma relação de melhores amigos com os meios de comunicação, para que estas endossem "A Verdade" e não dêem espaço para qualquer outra possível explicação.


O problema é que isso não acontece apenas nos chamados estados ditatoriais, mas também nos chamados "estados democráticos". Pode ser que a censura não seja tão escrachada quanto na China ou na Coréia do Norte, mas acontece. A charge ali em cima é uma das coisas mais geniais que já vi na internet, não apenas por fazer uma comparação muito boa entre as antigas capitanias hereditárias e nossa mídia, como também por deixar clara a natureza oligárquica dos nossos meios de comunicação. Vivemos em um país livre? Sim, desde que nossa liberdade não interfira com os interesses das Grandes Famílias ali em cima. O melhor exemplo disso foi o caso em que o filho do sr. Sérgio Sirotsky foi acusado de estuprar uma menina menor de idade. Teoricamente, em uma sociedade livre, tal acontecimento seria de alguma maneira noticiado, por que é o filho de um cidadão bastante importante cometendo um crime bastante grave. Apareceu na RBS? Obviamente não. Aliás, o blogueiro que denunciou o caso foi encontrado morto de maneira misteriosa, o que é uma estranha coincidência, na minha opinião.

Por um lado, a informação deseja ser cara, por que seu valor é muito alto. Mas, por outro, a informação busca ser livre. Não posso garantir esta hipótese, mas tenho a impressão de que o primeiro sinal de que uma ditadura está enfraquecendo é a maior quantidade de fontes diferentes de informação. A maior disponibilidade de meios de notícia, fora do controle estatal, indica que é possível acreditar em outras versões da realidade que não aquela oferecida pelo Estado. Se esta disponibilidade não é a causa direta para a queda de regimes totalitários, certamente é uma variável muito importante a ser levada em conta. Os revolucionários anarquistas e socialistas europeus do século XIX certamente sabiam disso, tanto que, onde quer que fossem, fundavam algum jornal ou revista para servir de meio de transmissão de suas idéias. Como a censura era forte, volta e meia estes jornais e revistas eram fechados ou proibidos de circular, o que apenas fazia com que outros aparecessem em seus lugares.


Fico imaginando o que estes revolucionários do século XIX, especialmente os anarquistas, diriam da internet. Mais interessante ainda seria o que eles fariam com ela. A rede mundial de computadores é o maior experimento anarquista de que tenho conhecimento, com toda essa informação livre correndo por aí e passando de mão em mão, de tela em tela, sem nenhum controle externo muito forte. Também é interessante que os governos dos EUA e da Europa estejam tentando aprovar legislações anti-pirataria que cortariam drasticamente o fluxo de informações entre usuários da internet, como o SOPA, PIPA e a ACTA. Usando do discurso da "Lei e da Ordem", afirmam que a pirataria digital é um perigo para a propriedade intelectual e produção criativa mundial. Acho difícil acreditar nisso, especialmente se considerarmos todos os séculos em que os Estados dominaram os grandes meios de comunicação e transmissão de informação. Muito se debocha da internet, dizendo que ela é 35% pornografia, 35% figuras de gatinhos, 30% pornografia japonesa e 40% pessoas reclamando de barriga cheia (eu uso o sistema russo de porcentagem, a propósito), e que seu poder de propagação de informação ainda é inferior ao dos grandes jornais e revistas. Porém, ela tem o potencial para crescer muito, e tornar-se muito mais influente do que a Mídia Tradicional, e muito mais democrática, no sentido de qualquer um poder contribuir. Acho que os Estados já perceberam esse potencial, e estão tentando cortar o mal pela raiz.

E é aqui que a filosofia anarquista entra mais uma vez. Tal como falei no post anterior, a anarquia não é desordem, mas uma organização que não necessita de um ponto centralizador, como o Estado ou a Igreja. Nela, todos contribuem da maneira que podem. Isso ficou muito claro nas manifestações contra a aprovação das leis anti-pirataria, que foram mundialmente expressivas. Penso que os blogs hoje ocupam o mesmo papel dos antigos jornais subversivos, com muito mais poder de divulgação e muito menos riscos de repressão estatal. Contudo, esta situação não é dada, muito menos natural: é conquistada e merecida. Pode ser ingenuidade da minha parte (como todo bom idealista costuma ser), mas é a partir da colaboração mútua entre indivíduos livres que a nova sociedade está sendo construída, e não da invenção de "novos" sistemas políticos "perfeitos". Manter a internet livre, tal como ela é hoje, sem legislações repressoras, é a primeira e mais crucial tarefa desta construção.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Diários de Bicicleta - contemplações sobre o trânsito, a vida e tudo o que se move sobre o asfalto

Foi hoje. Depois de muito tempo me enrolando, protelando minha decisão, fui numa oficina comprar uma bicicleta, acompanhado pelo meu valoroso amigo Brunão. Não saí de lá andando na minha bike nova, mas deixei tudo mais ou menos encaminhado para fazer isso até semana que vem.

Tenho a impressão de que tanto o fato de eu ter procrastinado todo esse tempo, tanto quanto o fato de eu tomar atitudes concretas para adquirir uma bicicleta nesta época não são aleatórios. Hoje, ao contrário de um ano atrás, quando comecei a pensar a respeito, eu realmente quero e preciso de uma "magrela". Primeiro, por que ao longo deste ano, eu acompanhei as discussões em torno das discussões sobre políticas de transporte público. Conversando com amigos que participam da Massa Crítica, lendo notícias de jornais - tanto da grande mídia como a Zero Hora, quanto meios mais digitais, como o Sul21 e o eventual link interessante que encontro no Facebook - e observando o trânsito de Porto Alegre, concluí que o atual modelo é insustentável. Toda a cidade é construída para facilitar o acesso de motoristas de automóveis, em detrimento de pedestres e ciclistas - não existem ciclovias, as sinaleiras claramente beneficiam os carros e atravessar na faixa às vezes é mais um desafio moral do que uma obrigação civil, considerando a falta de consideração dos motoristas. Eu, que estou em boa forma física, consigo correr com relativa facilidade e evitar o eventual atropelamento, mas não posso dizer isso de todos os habitantes de Porto Alegre.

LinkTalvez essa situação não fosse tão problemática se o carro não fosse uma maneira tão ineficaz de deslocamento: exige o uso de combustíveis fósseis caros e poluentes e é bom apenas para alguns poucos sortudos que têm dinheiro o bastante para comprar (e manter) um carro na garagem. Além disso, o carro é necessariamente espaçoso e individualista - pra não jogar a discrição pro alto e dizer egocêntrico logo de uma vez. Não precisa ser engenheiro civil com PhD em transportes públicos pra perceber isso. Basta observar por cinco minutos o tráfego numa rua importante, como a avenida Ipiranga ou a rua Lima e Silva: enquanto que numa calçada com 3 ou 4m de largura circulam dezenas ou talvez centenas de pedestres, no mesmo espaço na rua, trafegam apenas alguns carros que, não bastasse serem grandes, raramente transportam mais do que duas pessoas. Junte-se a isso o fato de que, quanto mais expandem as ruas, as avenidas e as estradas para comportar o grande volume de carros individuais, maior este volume se torna, por que os motoristas que, para evitar congestionamentos, antes pegavam carona ou iam de ônibus, agora pensam que podem se dar ao luxo de ir de carro para o trabalho, tornando a expansão inútil.
Outro problema que me levou a pensar em andar de bicicleta é o sistema de transporte público de Porto Alegre, que utilizo para ir para meu estágio no longínquo reino do Campus do Vale, quase em Viamão. Os ônibus que normalmente pego não são ruins. Pra falar a verdade, são bastante confortáveis para meus padrões não tão altos. Porém, esse aparente conforto se limita aos horários de menor movimento, antes ou depois do povo largar para o trabalho, quando os ônibus não estão tão lotados que tu corres o risco de perder o ponto se não te levantar duas ou três paradas antes para te espremer por entre os teus companheiros de jornada, até chegar à porta. Novamente, isso talvez não fosse um problema para mim, e eu poderia muito bem me organizar de forma a sempre pegar ônibus em horários de menor movimento de passageiros, se "menor movimento de passageiros" não significasse também "menor movimento de ônibus." Essa é uma situação meio "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come" - ou tu te atrasa, ou tu te espreme.
Talvez estes defeitos seriam escusáveis, se o transporte público fosse barato e eficiente. Mas ele não é nenhuma dessas duas coisas: a frota de ônibus não supre a demanda atual, e a passagem vai aumentar esse ano para R$2,90. Esse é o prego do caixão: desde que eu me mudei para Porto Alegre, em 2007, o preço da passagem aumentou de R$2,00 para R$2,90, sem nenhuma melhoria ou mudança significativa no serviço. A única explicação razoável e satisfatória para este aumento é que alguém na Prefeitura lucra com isso. Todos os anos, durante as férias escolares, é anunciado um aumento acima da taxa de inflação, jogando a culpa em algum fator irrelevante, como o aumento dos salários dos motoristas e cobradores, ou o "prejuízo" que as isenções para estudantes e idosos causa para as empresas de ônibus. É feito então algum tipo de manifestação, normalmente na Esquina Democrática, ou o uso de adesivos dizendo que o novo aumento é um assalto, que mobiliza a indignação pública, mas no fim das contas, não muda coisa nenhuma em relação ao aumento. No fim, depois de termos gasto toda nossa saliva reclamando e gritando que "3 pila é um abuso!", nos resignamos, e pagamos, sim, os três reais pelo serviço medíocre que nós é oferecido. Na minha fértil imaginação, eu vejo os donos da Carris, Unibus, Conorte e STS, gordos, bem vestidos e endinheirados, em algum restaurante chique bebendo champanhe, cheirando cocaína e rindo das nossas caras, dizendo enquanto se dão tapinhas nas costas "eles reclamam, reclamam e reclamam, mas sempre engolem o aumento, por que eles dependem da gente. Otários!" Talvez eu não tivesse o direito de reclamar do preço da passagem: estudo na UFRGS, ganho bolsa de extensão e tenho pais que me sustentam enquanto não me formo. Sou um playboy, um mauricinho, um pseudorevolucionário que fica reclamando de barriga cheia no seu blog, e que deveria usar meu tempo pra coisas mais produtivas, como estudar e ser um cidadão de bem. Talvez essa opinião conservadora esteja correta, mas não é tanto por mim, que posso tranquilamente pagar R$2,90 por viagem de ônibus, que eu reclamo: é por pessoas, homens e mulheres simples, que trabalham em condições precárias e ganham salários baixos, que não tem dinheiro para comprar um carro ou mudar de cidade, e para quem o aumento na passagem pode fazer a diferença entre poder ter uma refeição quente à noite ou não.
Há um último motivo que me levou a comprar uma bicicleta em 2012: a filosofia anarquista. Provavelmente, se você está lendo meu blog, já deve saber alguma coisa sobre essa escola de pensamento político. Porém, considerando que a vida é uma caixinha de surpresas, e sempre aparece alguém novo por aqui (especialmente pessoas pesquisando bolsas carteiro femininas e o futuro do cantor Leo Santana), acho que vale a pena explicar que anarquismo, ao contrário do que o senso comum nos ensina, não é a justificação da desordem ou da bagunça gratuita, mas uma filosofia que defende o poder pessoal e a ação direta. De uma perspectiva anarquista, protestar por melhores condições de transporte público é "militantemente mendigar" por aquilo que é meu por direito - poder ir e vir para onde eu quero. Esperar que o governador, o prefeito ou a presidente melhore minha vida é renunciar à minha própria capacidade de resolver aqui e agora meus problemas de forma criativa e guiada por meus ideais. Nós não sabemos, mas não dependemos de nenhum Estado ou governo para vivermos felizes, mas só estamos descobrindo isso aos poucos. Como disse meu amigo Marcelo um dia desses, "as coisas parecem que não vão pra frente, só que elas vão, bem devagar, como um musgo que vai lentamente se espalhando." É bem assim mesmo, penso eu.
Percebi isso enquanto eu observava o bicicleteiro Nativo mexer na sofrida bicicleta do Bruno. Com o cuidado e carinho que só quem entende do assunto consegue demonstrar, ele mexeu os pedais, apertou uns parafusos e declarou que estava tudo certo, e que só ia precisar trocar o quadro de marchas eventualmente. Foi um processo que durou, no máximo, dez minutos, mas que foi suficiente para me mostrar que a tecnologia da bicicleta é muito superior a do carro, não apenas por ser menos poluente, mas por que faz com que os indivíduos se envolvam e reflitam muito mais sobre a maneira como vivem suas vidas. Quando o nosso carro quebra, vamos até a oficina mais próxima, largamos ele na mão do mecânico e só voltamos na hora de pagar pelo reparo realizado. Não sabemos de nada do que foi feito (e quando o mecânico tenta descrever o que foi feito, fingimos entender para não ficarmos com cara de bobo). Com a bicicleta, como eu pude ver hoje no comportamento do Bruno, é diferente. Ele sabia o nome das peças, a importância de cada uma, e o que estava errado com a bicicleta (bem diferente do clássico "meu carro tá fazendo um barulho estranho"). Ficou ao lado do Nativo enquanto ele futricava e fuçava na magrela, e discutiu com ele o que deveria ser feito a seguir. Até o momento, todas as pessoas que eu conheço que fundamentam filosófica e politicamente o uso da bicicleta como meio de transporte alternativo ao carro fazem isso.
Outra coisa interessante sobre bikes: o grande reaproveitamento das peças já disponíveis no mercado. Mais do que encomendar bicicletas inteiras novas, se dá preferência a pegar uma peça aqui e outra lá para montar uma bike que é ao mesmo tempo nova e usada. Pode parecer uma maneira muito primitiva de produção, mas, misturando componentes que antes estavam separados, acumula-se experiência e cria-se conhecimento. Isso é ciência. Mais do que isso, é uma ciência sustentável, por que não pressupõe o descarte dos modelos tecnológicos anteriores, e sim seu aprimoramento. Por estes motivos, penso que andar de bicicleta é uma decisão eminentemente prática. Não apenas por facilitar minha vida e me poupar do incômodo de pagar quase três reais por viagem de ônibus, mas também por que, acredito eu, mudar o próprio comportamento é a melhor maneira de mudar o mundo a nossa volta. Ingênuo? Possivelmente. Porém, estou disposto a ver isso por mim mesmo, ao invés de acreditar em opiniões alheias.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Revestibular

Estava agora mesmo no Facebook olhando um print screen tirado do site da UFRS com as notas do primeiro e último colocados no vestibular para Medicina. Completamente alheio à discussão das cotas raciais e sociais, comecei a fazer pequenos experimentos mentais, tentando responder à seguinte pergunta: e se eu fizesse vestibular outra vez?

Cacete, acho que essa é uma pergunta que muita gente se faz quando chega no último ano da graduação. Salvo raras e deprimentes exceções, entrar na universidade é um dos momentos mais felizes da vida de um estudante. É neste momento em que trocamos a pressão do cursinho e da família para passar pela alegria de integrar a elite intelectual brasileira, e de poder encher a boca pra dizer "ah, eu estudo na UFRGS", sem contar os fantásticos amigos que se faz ao longo dos cinco (ou mais) anos de faculdade. É, desse ponto de vista, fazer vestibular outra vez não parece uma má idéia. Tu já passou nele antes, não? Agora tu já conhece as manhas, então vai ser mais fácil ainda. Além disso, tu agora tem uma experiência em primeira mão da universidade por dentro, já deve ter encontrado a tua zona de conforto e a maneira de ser feliz ali dentro. Fazer pós-graduação é mais difícil, e não é a mesma coisa que ser graduando, por que parece ter muito mais responsabilidades.

Nesse ponto, me imagino indo fazer a prova, ficando numa boa, escrevendo a redação sem pressa e, então, encontrando meu nome na lista de aprovados do concurso vestibular UFRGS 2013. Êxtase! Regozijo! Orgasmos múltiplos! Tudo bem, mas eu ainda não respondi uma perguntinha essencial: pra que curso eu faria outro vestibular? Faço agora outro experimento mental: e se eu fizesse vestibular para Medicina?

Os filhos da classe média, esse povo sofrido que mal e mal consegue pagar as prestações do carro novo e comprar uma TV LCD de 60 polegadas, ao longo dos três anos do ensino médio, é bombardeado seguidas vezes com a informação de que o vestibular para Medicina é muito concorrido, que tem que estudar muito, e que pouquíssimos são aprovados. A mensagem que nos mandam é que "passar em Medicina é foda". Nós pegamos essa mensagem, e ficamos honestamente assustados com a média harmônica do Vestibular, mas nós também codificamos outra mensagem, que vem escondida na primeira: se passar em Medicina é foda, quem passa em Medicina é foda também. E dessa mensagem, deduzimos uma série de outras - se eu passo em Medicina, que é foda, eu sou foda também. Então, a carreira em Medicina é uma coisa foda de boa, que vai pagar uma grana foda de alta, e qualquer coisa que eu quiser fazer dentro dela vai ser foda de foda, sabe por que? Por que eu sou foda.

Vitinho deve ser médico além de músico.

Questionamentos do tipo "será que é isso mesmo que eu quero fazer?" são abafados pelo som dos milhares de digdins tocando ao fundo dessa cacofonia, e muitos de nós concluem que o negócio é fazer Medicina. Talvez eu tenha exagerado na minha descrição, mas acho que, se exagerei, não foi muito. Não caí nessa armadilha, e muitos estudantes de outros cursos da UFRGS também não. Porém, o fenômeno de muita gente fazendo "faculdade de cursinho", estudando cinco anos para não passar em Medicina é tristemente comum. Não tenho nenhuma estatística precisa a este respeito, mas posso apostar com alguma segurança que todos os cursos pré-vestibulares de Porto Alegre têm pelo menos cinco alunos nesta condição, e estou sendo conservador nas minhas estimativas.

Mas será que toda essa badalação da Medicina é infundada? Certamente que não. Nunca em minha vida meus professores de Ensino Médio me ensinaram algo falso, desatualizado ou que não fosse profundamente importante, e que eu não fosse usar em minha vida futura. Então, passar em Medicina é passar pelos Portões do Paraíso Celeste e sentar ao lado direito de Deus, exceto que Deus não existe e quando nós morrermos vamos apenas apodrecer e virar comida de verme, por que médicos são ateus (apesar de serem a coisa mais próxima de Deus que nós temos). Já passei por um vestibular, fiz uma faculdade e estou quase diplomado nela. Agora deve ser a hora de abandonar as futilidades da vida inferior de psicólogo para abraçar a gloriosa vida de Médico.

Agora, neste ponto do meu experimento mental, me vejo outra vez fazendo a prova do vestibular para Medicina, passando, olhando a Zero Hora com o listão de aprovados na praia e gritando para todos que puderem ouvir "CHUPEM! MINHA! BENGA! EU SOU FODA!" ou qualquer outra blasfêmia parecida. Sim, os louros da vitória são doces. Enfrento, um problema filosófico importante aqui, que é o seguinte: pra fazer tudo isso, eu preciso primeiro passar em Medicina, e pra passar em Medicina, precisa estudar. De um jeito foda.

É, eu posso fazer isso. Mas mais importante do que saber se eu posso fazer, é saber por que eu vou fazer. Eu sei que eu posso jogar meu laptop pela janela enquanto eu grito que Satanás possuiu o HD e baixou 15 giga de pornografia. Eu sei que eu posso. Agora, eu não faço isso por que ia ser uma grande idiotice (especialmente se Satanás realmente tivesse baixado 15 giga de pornografia pra mim). Eu sei que eu posso estudar bastante para o vestibular, e eu sei que, se eu estudar bastante, eu posso passar em Medicina. Todavia, pergunto: por que eu faria isso? Sim, eu sou inteligente (eu sei até escrever para um blog), mas não sou telepata nem sou o escravo sexual de ninguém da reitoria, o que significa que vou ter que estudar bastante, por pelo menos um ano antes de fazer a prova. Esse ano não vai dar, por que tenho o último estágio e o TCC para escrever, a não ser que eu largue tudo pra conquistar meu sonho.

Na padaria é mais barato.

Mesmo que eu não faça isso e termine minha graduação em Psicologia (pra ter direito à cela especial), eu teria que jogar fora outro ano da minha vida só estudando. E estudando o que? Análise do Comportamento aplicado à contextos comunitários? Neuropsicologia Cognitiva? Teoria do Conhecimento Materialista? Não senhor! Eu ia ter que voltar pros meus livros de Física, ler as leituras obrigatórias e fazer muitas continhas de Matemática. Eu teria que deixar de fazer o que eu gosto de fazer, pra passar um ano me preparando para talvez passar mais seis anos fazendo alguma coisa que eu talvez goste, por que todo mundo me diz que essa coisa é foda.

Então, passado um ano de sacrifício (por que até hoje meus piores pesadelos envolvem estequiometria e química orgânica), eu finalmente posso fazer a prova. Daí vem outro problema pra mim. Esse ano, veja só você, eu fui fiscal do vestibular, e pude ver, em primeira mão, o que é ser vestibulando, sem ter que passar pelo desconforto de ser um. Por quatro horas e meia de quatro dias seguidos, pude acompanhar, sem pressa, a agonia que é fazer a prova da UFRGS. Algumas vezes, enquanto passava ao lado das mesas dos candidatos, eu olhava para as provas, via a imensidão de números e coisas escritas e pensava "obrigado Aslam, por eu não ter mais que passar por esse sufoco."

"De nada."
Mas eu acompanhei a prova para Psicologia. Os eventos mais empolgantes do nosso trabalho era acompanhar alguém até o banheiro quando o fiscal volante não estava disponível. Quem foi fiscal nos locais de prova para Medicina, por outro lado, teve tanta excitação que vai gastar os 300 reais que ganhou em bebida, pra esquecer o que viu: gente colando, gente chorando, gente sofrendo, e gente rodando na prova. Quase todo mundo, na verdade. Vale a pena passar por isso outra vez?

Resta, então, uma última pergunta, um último experimento mental: e se eu faço o vestibular para Medicina e passo? Vamos pular a parte em que eu comemoro a aprovação de um jeito que vai me botar na cadeia e ir direto para os dias de aula. Vou ser estudante de Medicina, sim, e todo mundo com quem eu falar vai admitir (ainda que apenas tacitamente) quão foda eu sou, e vou estar sempre a dois passos do Paraíso. Contudo, eu vou ser bixo de novo. E por seis anos, eu vou ser tratado (de novo) como se eu não soubesse a diferença entre a minha boca e a minha bunda, e ouvir explicações diárias em qual delas eu posso colocar cerveja. E entre uma explicação e outra sobre o artigo mais recente sobre os efeitos de ingerir álcool pelo reto, eu vou ter que fazer uma cacetada de estágios que não me interessam, como Ginecologia, Proctologia e Dermatologia, tudo isso no ambiente extremamente hierárquico e reacionário que é o hospital. Um médico poderia intervir agora e dizer "mas tu pode fazer estágio em Psiquiatria ou Neurologia, e trabalhar com aquilo que tu gosta." Sim, eu poderia. E é exatamente o que eu faço agora, sem ser estudante de Medicina. E, como cereja do bolo, a recompensa por estes seis anos de estudos sem sentido será mais dois anos de estudos sem sentido, agora como residente em alguma coisa. Fantástico.

Tendo feito todas estas considerações, concluo apenas uma coisa: melhor fazer mestrado, que pelo menos daí eu viro mestre em alguma coisa.

Chupa essa manga, Pai Mei.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sonhos de uma Noite de Verão

Já passei por essa fase antes: é verão, faz calor em Porto Alegre, e do ônibus que me leva para o estágio, vejo as propagandas da Coca-Cola falando sobre como as férias são a época mais fodástica da vida. Quando olho TV, vejo pessoas sendo felizes à beira do mar. Quando abro o Facebook, vejo que meus amigos criaram álbuns cheios de fotos ensolaradas e com títulos do tipo "Bombinhas", "Sol e Mar", "Felicidade." E tudo isso junto me deixa com vontade de ir pra praia.

Mas não é qualquer praia - quero ir para aquela que satisfará todos os meus desejos, desde a simples vontade de descansar, até coisas mais sutis, como sentir o cheiro de comida que pairava pelo ar quando eu costumava ficar dois meses inteiros na casa de praia da minha avó. Começo a fazer planos, e percebo que todos eles dependem de fatores que fogem ao meu controle: a atmosfera, o tempo, meu dinheiro, as outras pessoas. Sim, quero ir para a praia, mas não é qualquer praia: tem que ser uma que tenha gente conhecida, festas legais e um mar azul e tranquilo. A partir desse ponto em diante, os planos se tornam fantasias escrachadas, e me vejo vivendo as mais loucas aventuras e paixões nas areias de Atlântida, Tramandaí ou Florianópolis.

No início do ano passado, comecei um dos meus textos falando justamente sobre esse mesmo sentimento. A propaganda da Pepsi que diziam que o verão "pode ser bom" me faziam pensar em velhos amores tomando banho de sol na praia, apenas esperando algum acontecimento repentino e inesperado, algo que mudaria tudo para sempre. E esse acontecimento era eu, o único indivíduo usando roupas por que acabara de chegar ali de algum jeito muito insólito e original, caminhando despreocupado à beira do mar, com os sapatos jogados às costas e uma cara de que "sim, eu sou o que você quer." Como os seres humanos somos seres profundamente repetitivos, estou tendo as mesmas fantasias neste exato momento.



Por que ainda tenho essas fantasias? Acho que elas persistem por que não foram satisfeitas. Talvez todo sonho seja uma realidade querendo acontecer, e as minhas, desde o ano passado, estão enchendo o meu saco, ansiando por deixarem de ser meras produções imaginárias para se tornarem realidades e, então, memórias de um verão feliz. Elas, tanto quanto eu, depois de tanto tempo alimentadas por "Malhação", novelas baratas e pedaços de conversas ociosas que tive ou ouvi por aí, querem um novo amor, intenso, profundo, que seja maior e mais bonito que todas essas coisas cinzas, inúteis e irritantes que povoam a vida humana. Queremos algo transcendental, algo além do mundano, extraordinário, mas estou aqui, acompanhado apenas de meus delírios, esperando que esse algo mágico aconteça. Ano passado, eu sentei, esperei e me frustrei.

Será que esse ano pode ser diferente? Será que estou pedindo demais? Se eu levantar minha bunda nem tão gorda assim da cadeira e for pedir carona na FreeWay e der um jeito de chegar ao litoral, eu vou ter meus desejos realizados? Queria dizer que sim, e que o meu sonho de uma noite de verão está logo ali, esperando por mim em Cidreira, Pinhal ou (Deus me livre!) Magistério, para abalar as fundações de minha vida e me transformar em outro homem, mais realizado e completo por ter ao meu lado minha alma gêmea. Sim, queria muito dizer isso, e queria muito continuar acreditando que isso é realmente possível. Porém, como deve dar para imaginar, perdi minha fé nessa idéia, do mesmo jeito que um dia eu dolorosamente deixei de acreditar no Papai Noel.

Buscar, buscar e buscar para nunca, nunca e nunca encontrar! E quanto mais nos frustramos, mais ferozes nos tornamos em procurar a porção de felicidade, de amor e paixão que há guardada para nós em algum canto deste planeta. Esse canto, cabe dizer, é variável - durante o verão, é na praia. Durante o inverno, é em alguma pousada em Gramado ou Canela. Durante o cursinho, é na faculdade. Durante a faculdade, é no trabalho ou no mestrado. Nunca ela está onde acreditamos, e quando pensamos que a encontramos, ela de algum jeito some ou muda tanto que não é mais aquilo que queríamos e chegamos a ter.

Esses pensamentos já me desesperaram. Ontem mesmo, aliás. "Será que vai ser sempre assim? Eu mereço toda essa injustiça?" me perguntei várias vezes, sem conseguir encontrar uma resposta que harmonizasse as coisas como são com as coisas como eu quero. Mas não hoje. Hoje vejo algo de forma muito mais clara do que ontem. Tenho comigo o conhecimento duramente adquirido de que a felicidade não é "lá", em lugar abstrato, nem "então", num tempo impreciso e fugídio, mas aqui e agora, onde eu estou, onde sempre estou. Quando parei de procurar em outras praias, e contemplei a mim mesmo é que eu vi que já tinha tudo o que precisava. Não preciso encontrar uma paixão avassaladora e incrível, nem andar com os sapatos jogados às costas para provar alguma coisa. Tudo que eu preciso eu tenho já, comigo, em meu Ser. E apenas por saber disto, todas as outras necessidades, desejos e vontades que eu tinha se tornam velas diante do sol. E é quando me lembro e sei disso que sou realmente feliz.