domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um problema para a ciência da Psicoterapia (epílogo) - Sete Livros e Um Destino

Depois de quase cinco anos fazendo trabalhos acadêmicos e colocando referências no final da maioria deles, não consigo mais citar um livro em um texto sem depois dar as informações necessárias para que outras pessoas possam lê-los e ver por conta própria se o que eu falei a respeito deles é verdadeiro ou não. Então, como eu sou um nerd incorrigível como eu adoro a ABNT como eu defendo o livre conhecimento, passo aqui a lista dos sete livros que chamaram minha atenção enquanto eu escrevia o post anterior, mais alguns que eu penso serem tão importantes quanto eles. É importante ressaltar que só agora eu percebi que, dos sete livros que chamaram minha atenção, eu só tenha começado a ler um, por que os outros foram comprados apenas recentemente e/ou se perderam na minha longa lista de "livros por ler". Para balancear este problema, listarei mais sete livros que eu realmente li, e cuja leitura considero vital para qualquer empreitada séria em Saúde Coletiva.

Os Sete Que Eu Não Li
1) Neurociencia Aplicada a la Conducta Criminal y Corrupta - Elba Tornese e René Ugarte
2) A Practical Guide to Acceptance and Commitment Therapy - Steven Hayes e Kirk Strosahl
3) Psicoterapia Personalista - Arnold Lazarus
4) Buddha's Brain - Rick Hanson e Richard Mendius
5) Metacognitive Therapy for Anxiety and Depression - Adrian Wells
6) Relational Frame Theory - Steven Hayes, Dermot Barnes-Holmes e Bryan Roche
7) The Neuroscience of Psychotherapy - Louis Cozolino

Os Sete Que Eu Li (pelo menos um pouco)
1) Mindfulness for Two - Kelly Wilson e Troy DuFrene
2) Emotional Disorders and Metacognition - Adrian Wells
3) Learning RFT - Niklas Törneke
4) Psicoterapia Analítica Funcional - Robert Kohlenberg e Mavis Tsai
5) Processos Humanos de Mudança - Michael Mahoney
6) Psicoterapia Breve e Abrangente - Arnold Lazarus
7) The Will to Believe and other essays in popular philosophy - William James

Pensei em escrever também uma pequena justificativa para cada livro, mas depois mudei de idéia, primeiro por que ia estragar a surpresa do leitor descobrir por conta própria o que estes livros tem de atraente, e segundo por que ia dar trabalho demais para um domingo às cinco da manhã. Entretanto, é interessante notar o que essa lista diz a meu respeito. Por exemplo, depois de escrever essa lista, percebi que todos os livros, exceto um, são sobre psicoterapia ou neurociências, e que não há um livro sequer sobre Saúde Coletiva. Isto significa que eu não li nenhum livro sobre este assunto, ou que eu considerei todos os que li irrelevantes para o propósito deste post. Qualquer que seja a resposta correta, eu preciso ler mais. Aceito sugestões.

Um problema para a ciência da Psicoterapia

A ciência da Psicoterapia, como ela é ensinada e difundida nos dias de hoje, tem um problema seríssimo, na minha opinião. Temos mais de 100 anos de conhecimento acumulado, diversos modelos teóricos altamente eficazes para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos e muitos profissionais competentes, tanto no "campo", atendendo pacientes, quanto na "academia", pensando e fazendo pesquisa básica. Desde que Freud começou sua revolução psicanalítica, nós avançamos muito, tanto que até me atrevo a dizer que finalmente começamos a entender aquilo que chamamos de "natureza humana". Então, qual é o problema?

O problema que eu vejo é que, apesar de todo esse conhecimento acumulado ao longo de um século, o índice de transtornos mentais parece estar aumentando ao invés de diminuindo. Um leitor atento e bem informado poderia por a culpa disso nos maus métodos diagnósticos preconizados pelas principais organizações psiquiátricas do mundo, que acabam enviesando nosso olhar de modo a ver mais doenças, mas penso que há mais por trás do nosso problema do que apenas um erro estatístico, por que ainda é possível ver muitos homens e muitas mulheres sofrendo profundamente sem nunca receberem nenhum diagnóstico psiquiátrico de brinde. O que quero dizer com este longo rodeio é que 90% das grandes descobertas no campo da psicoterapia não refletem em mudanças positivas para a vasta maioria da população, e parte do problema se encontra justamente no treinamento dos profissionais da área da saúde mental, especialmente o dos psicoterapeutas. Falo deste ramo profissional por ser o que melhor conheço, por eu mesmo ser um psicoterapeuta em treinamento, e por achar que este é o ramo com o maior potencial desperdiçado. Explico por que.

No começo do século XX, quando Sigmund Freud começou a psicanálise, a idéia de tratar problemas de saúde que não podiam ser atribuídos a causas biológicas óbvias era um tanto quanto nova, e precisava se fundamentar em outras ciências. Freud, por ser neurologista, fundamentou a nova ciência que estava nascendo na tradicional clínica médica, que consiste (de maneira resumida) em atender um paciente de cada vez, escutar seus problemas com bastante atenção e então formular um tratamento adequado para as necessidades daquele indíviduo particular. Para treinar novos psicanalistas, era necessário encontrar pupilos brilhantes que se interessassem por este tipo de problema, e se dispusessem a passar por uma longa e trabalhosa análise didática, que serviria, entre outras coisas, para tornar o futuro psicanalista consciente de seus próprios problemas psicológicos, até então inconscientes. Este modelo foi o melhor que Freud conseguiu criar, e era suficiente e adequado para os tempos em que ele viveu. Entretanto, da maneira como eu vejo, o mundo e suas necessidades mudaram, mas a maneira de treinar terapeutas continua essencialmente o mesmo.

No imaginário popular, quem entra para a faculdade de Psicologia, ou para a residência em Psiquiatria, vai trabalhar com pacientes, montando seu consultório em um bairro acessível, ou atendendo no postinho em alguma favela vila comunidade bastante afastada do centro da cidade. Na faculdade, apesar de vermos muito mais coisas para além da Clínica "pura e simples", e de em nossa formação nós sermos obrigados a ver muitas outras coisas para além dela, essa mentalidade se mantém praticamente intacta. Talvez, a imagem que nós, acadêmicos, temos da Psicologia Clínica é ainda mais engessada do que a da população, justamente por que nós sabemos em detalhe como deve ser uma clínica: primeiro, ela deve acontecer em um consultório, tecnicamente chamado de "setting terapêutico", que deve ter uma série de características físicas (duas poltronas em distância confortável, talvez um divã e uma mesa de centro, aspecto neutro ou agradável, sala de espera com revistas mais ou menos atuais e, se você mora em uma cidade úmida e quente como Porto Alegre, um ar condicionado bem calibrado), durar de quarenta à sessenta minutos e ser realizada com apenas um paciente por vez. Dependendo da orientação teórica do psicoterapeuta em questão, esse número de "um paciente por vez" pode aumentar consideravelmente, podendo virar "um grupo famíliar por vez" ou "um grupo terapêutico por vez". Mesmo assim, o problema persiste, por que não é amplo o bastante.

Treinar psicoterapeutas é caro, por que envolve pelo menos cinco anos de muito estudo na faculdade, comprar muitos livros e pagar muitas idas a congressos, sem contar as eventuais pós-graduações que podem aparecer no caminho. Os psicoterapeutas formados sabem que precisaram ralar muito para conseguirem seu diploma, e por isso cobram um preço justo por seus serviços. Quanto é esse preço, você quer saber? Segundo o site do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o preço mínimo para uma consulta psicológica é de R$81,62, e o preço máximo é de R$139,93, mas é notório e sabido que profissionais a mais tempo no mercado podem cobrar muito mais do que isso por sessão. Quem é que pode pagar um preço desses? Quem tem casa própria, carro na garagem, renda fixa mais ou menos elevada, e que possui os meios necessários para comparecer pelo menos uma vez por semana ao consultório do psicólogo ou do psiquiatra. Quem são essas pessoas? Os membros das classes econômicas A e B. É bem possível que pessoas que pertencem às classes C, D e E paguem por sessões de psicoterapia, mas com grande sacrifício financeiro e pessoal. Quando este sacrifício não é possível ou desejável, existe a possibilidade de procurar ajuda gratuita em clínicas-escola, hospitais públicos e dispositivos do SUS como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS, antigamente conhecidos como "CAIS Mental"), ou a Unidade Básica de Saúde (UBS, popularmente chamado de posto de saúde). Os serviços oferecidos nestes lugares, contudo, não atende às necessidades de quem os procura, seja por falta de equipe, seja por que a dita equipe está sobrecarregada. Em outras palavras, quem não tem dinheiro, não tem acesso à psicoterapia, de maneira geral (e, também de maneira geral, quem mais precisa de tratamento psicológico é justamente quem menos chance tem de pagar por ele).

Depois de toda essa exposição, você poderia ficar incomodado com toda essa minha ênfase na psicoterapia e dizer "OK, teus argumentos fazem sentido, mas a psicoterapia NÃO é a única ferramenta de saúde mental de que dispomos. Existem muitos outros serviços e modelos que poderiam dar conta desse problema, e que são muito mais vantajosos em termos de custo-benefício." Você poderia ainda me listar algumas destas alternativas, como aquelas desenvolvidas pela Psicologia Social Comunitária, a Psicodinâmica do Trabalho e a Terapia Comunitária, e me indicar toda uma série de leituras a respeito delas para saber de suas aplicações práticas. Eu aceitaria sua resposta, por que conheço estas linhas de trabalho, e as respeito. Entretanto, apesar de elas irem além da visão restrita que a maioria dos psicoterapeutas têm a respeito do tratamento em saúde mental, elas possuem um grande defeito: elas não são cientificamente embasadas. Todas elas, até onde eu sei, foram desenvolvidas por indivíduos excepcionalmente criativos, as aplicaram aos problemas do "mundo real" e colheram frutos, mas elas não foram devidamente testadas e reguladas como as teorias de psicoterapia modernas foram. Isto significa que elas podem ser fundamentadas em idéias inadequadas a respeito do comportamento humano, e no longo prazo causarem mais dano do que benefício. Esta é uma profecia que não precisa se realizar.

Olhando por cima do meu ombro, dentre os muitos livros espalhados no tapete do meu quarto, sete chamam minha atenção. Estes livros, apesar de obviamente terem sido escritos por pessoas tão reais e imperfeitas quanto eu, não representam apenas o que estas pessoas pensam a respeito da saúde mental, ou o que elas gostariam que fosse verdadeiro a respeito da natureza humana. Não, todos estes livros são o produto final de décadas de pesquisa rigorosa, do acúmulo do conhecimento de milhares de indivíduos inteligentes, que dedicaram boa parte de suas vidas para desvendar os mistérios por trás do nosso comportamento, do nosso pensamento e da nossa emoção. São livros de psicopatologia, personalidade, psicoterapia e neurociência e eu não tenho a menor dúvida de que, dentro deles, se encontra a resposta para o sofrimento psíquico, e que, com base neles, poderia se fazer uma verdadeira revolução na Saúde Coletiva brasileira. Quero dizer com isto que eles são o caminho, a verdade e a luz? Não, nada disso. Quero dizer que com o conhecimento que eles nos oferecem, podemos melhorar a vida de muitas pessoas, se os usarmos para reformular a maneira como a saúde mental é abordada e tratada em nosso país, por que não são apenas uma "sugestão educada". Entretanto, eles não oferecem uma resposta para todos os nossos problemas, por que eles foram escritos dentro do mesmo paradigma de treinamento de psicoterapeutas que critiquei acima. É preciso encontrar uma maneira de empregar este conhecimento em larga escala, não "um paciente a cada cinquenta minutos no consultório", mas "dez mil pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar", desenvolver métodos para utilizar tudo isto que sabemos em salas de aula, em empresas, em calçadas movimentadas e mesmo filas de banco. Isto não significa que os dias da clínica e da psicoterapia individual estejam contados e que ela será abandonada. Significa que, no futuro, ela deixará seu lugar central no quadro geral da Saúde Coletiva para ocupar um outro, mais periférico. Entretanto, ao assumir este novo lugar, ela será finalmente livre, e trabalhará com o que ela sabe fazer de melhor, estimulando o crescimento pessoal e a realização de quem a procura.