domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um problema para a ciência da Psicoterapia (epílogo) - Sete Livros e Um Destino

Depois de quase cinco anos fazendo trabalhos acadêmicos e colocando referências no final da maioria deles, não consigo mais citar um livro em um texto sem depois dar as informações necessárias para que outras pessoas possam lê-los e ver por conta própria se o que eu falei a respeito deles é verdadeiro ou não. Então, como eu sou um nerd incorrigível como eu adoro a ABNT como eu defendo o livre conhecimento, passo aqui a lista dos sete livros que chamaram minha atenção enquanto eu escrevia o post anterior, mais alguns que eu penso serem tão importantes quanto eles. É importante ressaltar que só agora eu percebi que, dos sete livros que chamaram minha atenção, eu só tenha começado a ler um, por que os outros foram comprados apenas recentemente e/ou se perderam na minha longa lista de "livros por ler". Para balancear este problema, listarei mais sete livros que eu realmente li, e cuja leitura considero vital para qualquer empreitada séria em Saúde Coletiva.

Os Sete Que Eu Não Li
1) Neurociencia Aplicada a la Conducta Criminal y Corrupta - Elba Tornese e René Ugarte
2) A Practical Guide to Acceptance and Commitment Therapy - Steven Hayes e Kirk Strosahl
3) Psicoterapia Personalista - Arnold Lazarus
4) Buddha's Brain - Rick Hanson e Richard Mendius
5) Metacognitive Therapy for Anxiety and Depression - Adrian Wells
6) Relational Frame Theory - Steven Hayes, Dermot Barnes-Holmes e Bryan Roche
7) The Neuroscience of Psychotherapy - Louis Cozolino

Os Sete Que Eu Li (pelo menos um pouco)
1) Mindfulness for Two - Kelly Wilson e Troy DuFrene
2) Emotional Disorders and Metacognition - Adrian Wells
3) Learning RFT - Niklas Törneke
4) Psicoterapia Analítica Funcional - Robert Kohlenberg e Mavis Tsai
5) Processos Humanos de Mudança - Michael Mahoney
6) Psicoterapia Breve e Abrangente - Arnold Lazarus
7) The Will to Believe and other essays in popular philosophy - William James

Pensei em escrever também uma pequena justificativa para cada livro, mas depois mudei de idéia, primeiro por que ia estragar a surpresa do leitor descobrir por conta própria o que estes livros tem de atraente, e segundo por que ia dar trabalho demais para um domingo às cinco da manhã. Entretanto, é interessante notar o que essa lista diz a meu respeito. Por exemplo, depois de escrever essa lista, percebi que todos os livros, exceto um, são sobre psicoterapia ou neurociências, e que não há um livro sequer sobre Saúde Coletiva. Isto significa que eu não li nenhum livro sobre este assunto, ou que eu considerei todos os que li irrelevantes para o propósito deste post. Qualquer que seja a resposta correta, eu preciso ler mais. Aceito sugestões.

Um problema para a ciência da Psicoterapia

A ciência da Psicoterapia, como ela é ensinada e difundida nos dias de hoje, tem um problema seríssimo, na minha opinião. Temos mais de 100 anos de conhecimento acumulado, diversos modelos teóricos altamente eficazes para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos e muitos profissionais competentes, tanto no "campo", atendendo pacientes, quanto na "academia", pensando e fazendo pesquisa básica. Desde que Freud começou sua revolução psicanalítica, nós avançamos muito, tanto que até me atrevo a dizer que finalmente começamos a entender aquilo que chamamos de "natureza humana". Então, qual é o problema?

O problema que eu vejo é que, apesar de todo esse conhecimento acumulado ao longo de um século, o índice de transtornos mentais parece estar aumentando ao invés de diminuindo. Um leitor atento e bem informado poderia por a culpa disso nos maus métodos diagnósticos preconizados pelas principais organizações psiquiátricas do mundo, que acabam enviesando nosso olhar de modo a ver mais doenças, mas penso que há mais por trás do nosso problema do que apenas um erro estatístico, por que ainda é possível ver muitos homens e muitas mulheres sofrendo profundamente sem nunca receberem nenhum diagnóstico psiquiátrico de brinde. O que quero dizer com este longo rodeio é que 90% das grandes descobertas no campo da psicoterapia não refletem em mudanças positivas para a vasta maioria da população, e parte do problema se encontra justamente no treinamento dos profissionais da área da saúde mental, especialmente o dos psicoterapeutas. Falo deste ramo profissional por ser o que melhor conheço, por eu mesmo ser um psicoterapeuta em treinamento, e por achar que este é o ramo com o maior potencial desperdiçado. Explico por que.

No começo do século XX, quando Sigmund Freud começou a psicanálise, a idéia de tratar problemas de saúde que não podiam ser atribuídos a causas biológicas óbvias era um tanto quanto nova, e precisava se fundamentar em outras ciências. Freud, por ser neurologista, fundamentou a nova ciência que estava nascendo na tradicional clínica médica, que consiste (de maneira resumida) em atender um paciente de cada vez, escutar seus problemas com bastante atenção e então formular um tratamento adequado para as necessidades daquele indíviduo particular. Para treinar novos psicanalistas, era necessário encontrar pupilos brilhantes que se interessassem por este tipo de problema, e se dispusessem a passar por uma longa e trabalhosa análise didática, que serviria, entre outras coisas, para tornar o futuro psicanalista consciente de seus próprios problemas psicológicos, até então inconscientes. Este modelo foi o melhor que Freud conseguiu criar, e era suficiente e adequado para os tempos em que ele viveu. Entretanto, da maneira como eu vejo, o mundo e suas necessidades mudaram, mas a maneira de treinar terapeutas continua essencialmente o mesmo.

No imaginário popular, quem entra para a faculdade de Psicologia, ou para a residência em Psiquiatria, vai trabalhar com pacientes, montando seu consultório em um bairro acessível, ou atendendo no postinho em alguma favela vila comunidade bastante afastada do centro da cidade. Na faculdade, apesar de vermos muito mais coisas para além da Clínica "pura e simples", e de em nossa formação nós sermos obrigados a ver muitas outras coisas para além dela, essa mentalidade se mantém praticamente intacta. Talvez, a imagem que nós, acadêmicos, temos da Psicologia Clínica é ainda mais engessada do que a da população, justamente por que nós sabemos em detalhe como deve ser uma clínica: primeiro, ela deve acontecer em um consultório, tecnicamente chamado de "setting terapêutico", que deve ter uma série de características físicas (duas poltronas em distância confortável, talvez um divã e uma mesa de centro, aspecto neutro ou agradável, sala de espera com revistas mais ou menos atuais e, se você mora em uma cidade úmida e quente como Porto Alegre, um ar condicionado bem calibrado), durar de quarenta à sessenta minutos e ser realizada com apenas um paciente por vez. Dependendo da orientação teórica do psicoterapeuta em questão, esse número de "um paciente por vez" pode aumentar consideravelmente, podendo virar "um grupo famíliar por vez" ou "um grupo terapêutico por vez". Mesmo assim, o problema persiste, por que não é amplo o bastante.

Treinar psicoterapeutas é caro, por que envolve pelo menos cinco anos de muito estudo na faculdade, comprar muitos livros e pagar muitas idas a congressos, sem contar as eventuais pós-graduações que podem aparecer no caminho. Os psicoterapeutas formados sabem que precisaram ralar muito para conseguirem seu diploma, e por isso cobram um preço justo por seus serviços. Quanto é esse preço, você quer saber? Segundo o site do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o preço mínimo para uma consulta psicológica é de R$81,62, e o preço máximo é de R$139,93, mas é notório e sabido que profissionais a mais tempo no mercado podem cobrar muito mais do que isso por sessão. Quem é que pode pagar um preço desses? Quem tem casa própria, carro na garagem, renda fixa mais ou menos elevada, e que possui os meios necessários para comparecer pelo menos uma vez por semana ao consultório do psicólogo ou do psiquiatra. Quem são essas pessoas? Os membros das classes econômicas A e B. É bem possível que pessoas que pertencem às classes C, D e E paguem por sessões de psicoterapia, mas com grande sacrifício financeiro e pessoal. Quando este sacrifício não é possível ou desejável, existe a possibilidade de procurar ajuda gratuita em clínicas-escola, hospitais públicos e dispositivos do SUS como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS, antigamente conhecidos como "CAIS Mental"), ou a Unidade Básica de Saúde (UBS, popularmente chamado de posto de saúde). Os serviços oferecidos nestes lugares, contudo, não atende às necessidades de quem os procura, seja por falta de equipe, seja por que a dita equipe está sobrecarregada. Em outras palavras, quem não tem dinheiro, não tem acesso à psicoterapia, de maneira geral (e, também de maneira geral, quem mais precisa de tratamento psicológico é justamente quem menos chance tem de pagar por ele).

Depois de toda essa exposição, você poderia ficar incomodado com toda essa minha ênfase na psicoterapia e dizer "OK, teus argumentos fazem sentido, mas a psicoterapia NÃO é a única ferramenta de saúde mental de que dispomos. Existem muitos outros serviços e modelos que poderiam dar conta desse problema, e que são muito mais vantajosos em termos de custo-benefício." Você poderia ainda me listar algumas destas alternativas, como aquelas desenvolvidas pela Psicologia Social Comunitária, a Psicodinâmica do Trabalho e a Terapia Comunitária, e me indicar toda uma série de leituras a respeito delas para saber de suas aplicações práticas. Eu aceitaria sua resposta, por que conheço estas linhas de trabalho, e as respeito. Entretanto, apesar de elas irem além da visão restrita que a maioria dos psicoterapeutas têm a respeito do tratamento em saúde mental, elas possuem um grande defeito: elas não são cientificamente embasadas. Todas elas, até onde eu sei, foram desenvolvidas por indivíduos excepcionalmente criativos, as aplicaram aos problemas do "mundo real" e colheram frutos, mas elas não foram devidamente testadas e reguladas como as teorias de psicoterapia modernas foram. Isto significa que elas podem ser fundamentadas em idéias inadequadas a respeito do comportamento humano, e no longo prazo causarem mais dano do que benefício. Esta é uma profecia que não precisa se realizar.

Olhando por cima do meu ombro, dentre os muitos livros espalhados no tapete do meu quarto, sete chamam minha atenção. Estes livros, apesar de obviamente terem sido escritos por pessoas tão reais e imperfeitas quanto eu, não representam apenas o que estas pessoas pensam a respeito da saúde mental, ou o que elas gostariam que fosse verdadeiro a respeito da natureza humana. Não, todos estes livros são o produto final de décadas de pesquisa rigorosa, do acúmulo do conhecimento de milhares de indivíduos inteligentes, que dedicaram boa parte de suas vidas para desvendar os mistérios por trás do nosso comportamento, do nosso pensamento e da nossa emoção. São livros de psicopatologia, personalidade, psicoterapia e neurociência e eu não tenho a menor dúvida de que, dentro deles, se encontra a resposta para o sofrimento psíquico, e que, com base neles, poderia se fazer uma verdadeira revolução na Saúde Coletiva brasileira. Quero dizer com isto que eles são o caminho, a verdade e a luz? Não, nada disso. Quero dizer que com o conhecimento que eles nos oferecem, podemos melhorar a vida de muitas pessoas, se os usarmos para reformular a maneira como a saúde mental é abordada e tratada em nosso país, por que não são apenas uma "sugestão educada". Entretanto, eles não oferecem uma resposta para todos os nossos problemas, por que eles foram escritos dentro do mesmo paradigma de treinamento de psicoterapeutas que critiquei acima. É preciso encontrar uma maneira de empregar este conhecimento em larga escala, não "um paciente a cada cinquenta minutos no consultório", mas "dez mil pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar", desenvolver métodos para utilizar tudo isto que sabemos em salas de aula, em empresas, em calçadas movimentadas e mesmo filas de banco. Isto não significa que os dias da clínica e da psicoterapia individual estejam contados e que ela será abandonada. Significa que, no futuro, ela deixará seu lugar central no quadro geral da Saúde Coletiva para ocupar um outro, mais periférico. Entretanto, ao assumir este novo lugar, ela será finalmente livre, e trabalhará com o que ela sabe fazer de melhor, estimulando o crescimento pessoal e a realização de quem a procura.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Reflexões das Férias

Decidi que iria escrever alguma coisa aqui no blog. O quê? Não sei. Qualquer coisa serve. Qualquer coisa que passar pela minha cabeça. É divertido fazer isso, por que surgem idéias inusitadas. Elas podem ser retardadas, como a história de um texugo assassino que quer vingar a morte de sua família, mas às vezes, bem às vezes, sai uma coisa que preste.

É divertido escrever o fluxo de consciência, porque é uma maneira mais natural de escrever. Quando se escreve "seriamente", tem que parar, reler o texto, ver se as palavras se encaixam, se não tem coisa demais, e cortar o que fica feio e/ou sobrando. Assim não - tudo fica bom, mesmo que fique uma merda. Escrita de fluxo de consciência também é bom para exercitar os músculos mentais, as redes neurais responsáveis pela criatividade e pela linguagem em geral.

Outra vantagem desse método: enche murcilha que uma beleza. Por exemplo, eu tenho uns sete ou oito textos por terminar de escrever e publicar, mas dá muito trabalho fazer isso. Então, pra não deixar isso aqui abandonado, eu martelo bem rápido meu teclado pra formar umas frases mais ou menos concatenadas, não reviso porcaria nenhuma e pronto, tenho um post novo! Claro, alguém vai ali nos comentários reclamar que eu sou um vagabundo, só que isso não é ofensa, é constatação de fatos. Sou adepto da filosofia de "quanto menos trabalho der, melhor", por que, afinal de contas, pra que se cansar se eu posso não me cansar? Cansaço é cansativo. Descanso, por outro lado, é bom. No presente momento, eu estou de férias de tudo - aulas, estágio, bolsa - e estou muito feliz por isso. Nos últimos dias de janeiro, quando eu ainda estava trabalhando, percebi que estava mais do que cansado ou de saco cheio: eu estava queimado: Burnout, aquela síndrome comportamental que afeta pessoas sobrecarregadas, e que acontece muito em trabalhadores da área da saúde. Então, se vierem me entrevistar sobre esse tipo de situação, eu vou ser parte da estatística daqueles que se ferraram por não saber quando parar.

Por um lado, contudo, foi bom, por que me fez perceber que eu não sei cuidar de mim, apesar de trabalhar cuidando dos outros. Rememorei outras situações, recentes e não tão recentes assim, em que eu me coloquei em situações desnecessariamente desgastantes por que "eu tinha que fazer aquilo", "seria uma vergonha para todo o sempre não fazer isso" e coisas parecidas. Eu chamo isso de Complexo de Salvador: faz tudo para salvar a vida de todos ao seu redor, e a única pessoa que não consegue ajudar é a si próprio. Tem outro nome pra isso também - Curador Ferido. Eu gosto dessa imagem, por que ela é carregada de tragédia e ironia.

Estou aprendendo a dividir as coisas, nomeá-las adequadamente e a colocá-las em seu lugar de direito. O que é do estágio, fica no estágio; o que é da faculdade, fica na faculdade; o que é da minha própria vida pessoal fica comigo e não se mistura com o resto. Talvez seja um tanto quanto duro dizer que "as coisas não se misturam" - se misturam, sim, mas de um jeito diferente. Eu não deixo de ser eu mesmo por estar em um contexto diferente. O que muda são meus papéis, e esses não podem se misturar: não ser amigo com os pacientes, não ser psicólogo com os amigos, e, principalmente, saber quando parar e deixar meu corpo se curar e cuidar de si. Parece óbvio, ululante, mas é mais difícil do que parece, pelo menos para mim. Sinto como se estivesse cometendo um erro, desperdiçando minha energia de maneira não-produtiva. "Há livros pra ler, filmes por ver e pacientes para curar, seu vagabundo!" digo para mim mesmo. Só que não adianta tentar salvar o mundo se você não tem vontade nem de sair da cama de manhã, como aconteceu comigo nos últimos dias antes das férias. É necessário cuidar de si, para poder cuidar melhor dos outros.

Bom, para um texto que começou bobo e nada a ver até que saiu um negócio profundo.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Direitos Humanos, Direitos Animais

Enquanto o mundo comemora a renúncia do ditador egípcio como uma conquista dos direitos humanos e da liberdade, outros, mais modestos e mais próximos de casa, comemoram o cancelamento do Show de Touros do XV Rodeio Internacional de Passo Fundo:

"Em virtude dos protestos recebidos pela Prefeitura Municipal e Funzoctur a respeito do show de touros, marcado para acontecer no XV Rodeio Internacional de Passo Fundo a partir desta noite, a atividade foi cancelada pela coordenação de evento. A apresentação, que já foi realizada em outras edições do evento e também em dezenas de rodeios por todo o Rio Grande do Sul, prevê brincadeiras envolvendo o público e o gado que corre solto dentro da pista.
O presidente da Funzoctur, Antônio Augusto Reveilleau destaca que jamais seriam permitidos maus tratos aos animais dentro do Rodeio de Passo Fundo e que a intenção da atividade era divertir e integrar o público que participa da festa. “Estamos suspendendo a atividade para atender as solicitações das pessoas que se colocaram contra. Mas temos consciência de que nenhum animal seria maltratado durante a apresentação”, concluiu.
O show deveria durar 45 minutos e teria vários momentos, como a Mesa da Amargura, onde 4 pessoas da platéia são convidadas a sentar no meio da arena, junto com um boi sem chifres, que corre solto pelo local."

Vejo um certo paralelismo entre esses dois acontecimentos, e que vai além do fato de ambos terem se tornado realidade graças ao ativismo de um número considerável de pessoas. Permitam-me explicar por que.

Desde o início do ano passado, adotei uma dieta estritamente vegetariana, depois de um longo e gradativo processo de diminuição no meu consumo de carne e derivados. Apesar de ter sido apreciador de um bom bife desde a mais tenra idade, tomei esta decisão por vários motivos. Entretanto, o fundamento básico por trás dessa decisão é bastante simples: os animais sacrificados para meu consumo sofrem, e eu não quero mais ser responsável por este sofrimento. Nunca adotei uma posição ativa como defensor da ética vegetariana, por detestar o proselitismo, e preferir que as pessoas tomem suas decisões baseadas em suas próprias experiências ao invés de sofrerem influências invasivas e excessivas de pregadores inadequados. Escrevo este texto com sabor mais militante, contudo, por que não o vejo como um artigo do proselitismo: cada um que visitar este blog poderá lê-lo, refletir a respeito dele, considerá-lo correto ou não e, se quiser, pode adotar ou não uma ética vegetariana. Por favor, lembrem-se disso ao lerem este texto. Considero o posicionamento aqui explicitado como sendo o correto, mas estou aberto a outras opiniões.

O mesmo não pode ser dito de muitas pessoas carnívoras que conheço. Quando falo que sou vegetariano para alguns conhecidos, frequentemente encontro respostas debochadas como "sente peninha dos animaizinhos?", como se isto fosse um absurdo. Como corolário (decorrência imediata de um teorema, segundo a sempre presente Wikipédia) desta atitude inconsciente, vem outra afirmação: por que devemos nos preocupar com a sorte de animais de corte como vacas e ovelhas, quando há tantos seres humanos passando fome por aí? Talvez seja um equívoco da minha parte pensar que ela é frequentemente dita por aí, porém, não tenho a menor dúvida de que ela é bastante forte no inconsciente coletivo da maior parte da população: por que nos preocuparmos com espécies diferentes das nossas? Temos tantas pessoas por aí sofrendo que é perder o foco nos preocuparmos com criaturas inferiores.

É uma forma lógica de pensar, e eu mesmo consigo perceber seu fundamento: primeiro cuidamos do que está mais próximo, e depois, se necessário, resolvemos o resto. Entretanto, ainda me incomodo com este posicionamento filosófico, por três motivos básicos. O primeiro deles é que é uma atitude inconsciente - dificilmente ela se sustenta depois de uma reflexão cuidadosa e aprofundada. Segundo, é uma crença egocêntrica e hedonista, como o próprio carnivorismo. Quando questionadas por que devemos continuar comendo carne, as respostas mais frequentes são "por que é bom", "por que é nutritivo" e "por que carne de soja é ruim e não nutre". Terceiro, e mais importante, esta crença me incomoda por que ela estimula o egoísmo e comodismo se escondendo atrás de uma fachada de preocupação e altruísmo: deixamos de nos preocupar com o sofrimento de criaturas diferentes de nós, sem com isso aumentar nossa capacidade de nos importarmos com nossos semelhantes. O contrário, entretanto, é verdadeiro: quem se importa com os direitos animais também se importa com os direitos humanos, e, por empatia funcional, quando um aumenta de intensidade, o outro também. Claro que existem anomalias por aí, como por exemplo aqui em Porto Alegre, onde um grupo de defesa dos animais se posicionou contra os carroceiros por que eles maltratam os cavalos que puxam suas carroças, mas, por experiência própria, tendo a acreditar que isto é exceção, e não regra, e quanto mais nós nos interessamos e nos importamos com outras espécies, maior calor e compaixão guardamos para nossos semelhantes.

Sei que este texto deixou muitas pontas soltas, especialmente no que diz respeito à ética vegetariana e minhas críticas ao que chamo de carnivorismo. Detesto ter que deixá-las soltas agora, por que não é realmente adequado escrever a respeito delas aqui. Entretanto, se alguém quiser discutir isso comigo, me espera na saída da escola que eu te encho de porrada, seu mané deixe um comentário aqui no blog que eu respondo.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Necessidade de Viver por uma Mentira

Ao longo de toda a sua história, a humanidade sempre esteve à beira da destruição. Mesmo assim, continuamos por aqui, vivendo. Então, o que acontece conosco?

Tive essa semana uma discussão com alguns amigos meus sobre o futuro da humanidade, e a conclusão que todos nós chegamos foi de que a humanidade está destinada a sofrer ainda mais no futuro, e as coisas daqui para frente só vão piorar. Talvez por termos acesso a dados recentes de poluição, política e sociedade, podemos argumentar que nossa conclusão é a mais acertada. Também poderia dizer que, por sermos intelectuais, nós tenhamos herdado a tendência da classe de pensar que o mundo é uma grande porcaria, e que essa porcaria só vai aumentar de tamanho com o passar do tempo, e que nossa visão não é mais acurada do que a de qualquer outra pessoa que pare e pense a respeito da própria vida.

Os seres humanos em geral, e intelectuais de maneira acentuada, têm a tendência a ver primeiro o que está acontecendo de errado, o que causa dor, o que destrói, o que foi perdido e o que será. É, para todos os efeitos, "a visão pessimista da vida", que alguns livros de auto-ajuda modernos diagnosticam como sendo o maior entrave para a nossa felicidade. E, confirmando o que eu disse, são exatamente estes livros os que mais são criticados por que são "otimistas demais" - sofrem da "Síndrome de Poliana", aquela personagem que todo mundo acha chata por que vê algo positivo em todas as desgraças que acontecem na vida dela. "Otimismo", para muitas pessoas, especialmente aquelas da parcela "pensante" da população, é um adjetivo de conotações depreciativas. Os personagens que nós mais gostamos em histórias são aqueles com língua afiada, sempre dispostos a apontar os erros dos outros e como o mundo é uma grande palhaçada. Quanto os otimistas, normalmente eles passam por um longo e doloroso processo, onde todas as suas esperanças infantis são destruídas, e eles também viram pessimistas, ou pelo menos deixam de ser otimistas - adquirem "sabedoria". A ciência aparentemente também confirma essa tendência: um estudo realizado na Austrália encontrou como resultado que pessoas com afetos negativos produzem mensagens interpessoais mais persuasivas e de melhor qualidade do que pessoas com afetos positivos (para que eu não seja acusado de inventar estudos, o título do artigo é "When sad is better than happy: Negative affect can improve the quality and effectiveness of persuasive messages and social influence strategies" por Joseph P. Forgas - pode procurar no Google Acadêmico ou me mandar um e-mail que eu envio o arquivo). Mais do que isso, é quase um truísmo (uma afirmação desnecessária por ser óbvia, como "o sol aparece no céu" ou "o Corinthians nunca vai ganhar uma Libertadores") para a psicologia evolucionista dizer que um viés negativo, isto é, ativamente procurar por estímulos perigosos no ambiente, ajudou nossa espécie a sobreviver e moldou a maneira como pensamos e nos comportamos hoje.

Se formos por este caminho lógico, teremos quase certeza de que "pensamento negativo" é praticamente sinônimo de "pensamento realista". Mais ainda: se você for uma pessoa radical como eu, que vai até às conclusões lógicas extremas de uma idéia, vai também concluir que "pensamento positivo" é também quase sinônimo de "babaquice", e que deveria ser abolido da nossa psiquê. Tal conclusão nos leva a outra pergunta: por que é que não foi abolida ainda, então? Sigamos esse fio um pouco mais, e façamos outras perguntas: se "O Segredo" é tão criticado, por que vende tanto? Se "What the bleep do we know?" foi tão avacalhado e execrado, como é que ele virou o sucesso que é hoje? E por que temos tantos livros de auto-ajuda sobre pensamento positivo nas livrarias, nas bibliotecas, nas mãos de donas-de-casa sobrecarregadas e de empresários empreendedores? Por que continuamos com essa bobagem se ela é tão ilógica e imbecil? POR QUE?

Bueno, acontece que não somos tão lógicos quanto desejamos ser. Para ser franco, a idéia da Razão controlar a Emoção é um ideal relativamente recente, do tempo de Descartes, ou talvez um pouco antes, e uma idéia bastante antiquada, considerando o que a neurociência afetiva tem encontrado a respeito da relação inseparável entre sentimentos e pensamentos nos nossos cérebros. Não somos os seres racionais e ponderados que imaginamos ser. Na maior parte do tempo, somos dominados por fortes emoções que jogam nosso ponderamento para o canto, de onde só sai depois de nos acalmarmos. Este poderia ser considerado o principal motivo para não abandonarmos essa coisa ilógica que é o "pensamento positivo". Mas eu acredito que exista outra razão, ainda mais poderosa do que essa: se nós não abandonamos nossos inadequados padrões de pensamento otimista, é por que nós não podemos viver sem eles.

Lenta, mas constantemente, ao longo da história de nossa espécie, o pensamento positivo vem se tornando mais importante e mais proeminente em nossas vidas. Se nossos antepassados primatas de planície precisavam viver em constante terror para sobreviver e procriar, por habitarem um ambiente hostil e com poucos recursos, nós não precisamos: dominamos nosso ambiente, e desenvolvemos técnicas que, se comparadas com o que tínhamos cinco ou seis séculos atrás, são tão miraculosas quanto tirar leite de pedra. Nesse novo contexto em que nos encontramos, podemos nos dar ao luxo de viver, ao invés de meramente continuar existindo, de desfrutar o que há de bom e belo neste mundo. Podemos nos dar ao luxo, e devemos. Uma coisa que escapou a todos os críticos dos livros de auto-ajuda como "O Segredo" é o fenômeno psicológico por trás deles - as pessoas querem e precisam ser felizes, e estão procurando uma maneira de alcançar esta felicidade. Talvez estejam procurando em todos os lugares errados, como é hábito entre nós seres humanos, mas estão procurando e, um dia, eu espero, encontrarão, nem que seja por breves e doces instantes de êxtase.

O ponto mais importante deste texto, e o que mais quero ressaltar, reside numa pequena descoberta da ciência, ou, melhor dizendo, uma mudança em seus valores. Nós, como seres humanos, não temos acesso à realidade pura ao nosso redor, pois ela sempre é filtrada de alguma maneira pelos nossos sentidos e por nosso organismo. Os estímulos que recebemos de fora de nosso corpo vêm como uma enxurrada desorganizada e caótica, que precisa ser filtrada e organizada. Qual é a maneira "correta" de organizar toda esta informação? Qual o jeito mais próximo à realidade? Nossas capacidades cognitivas limitadas não tem acesso à esta resposta. Nos resta apenas criar nossa visão do mundo do modo mais adequado às nossas necessidades psicológicas, ou, em outras palavras, como nós queremos. De um ponto de vista racionalista, isto é o mesmo que viver uma mentira. E, para ser franco, é mesmo - nós precisamos viver uma mentira, uma verdade que esqueceu de acontecer, por que a "realidade objetiva do mundo" não é boa o bastante. Pessoas deprimidas e com afeto negativo são mais eficazes em ver o mundo tal como ele, mas de que adianta, se isso não nos ajuda a transformar o mundo naquilo que ele poderia ser? As utopias de 100 anos atrás hoje são realidade, por que não acreditar que as utopias de hoje em 100 anos também se realizarão?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Tempo e Estrutura

Finalmente, estou de férias. Depois de um longo mês de janeiro trabalhando, algo que nunca antes eu tinha feito, me dei o direito de tirar férias. Logo no primeiro dia de férias, quando constatei que quase todos os meus amigos estavam na praia ou viajando, fui tomado por um sentimento de urgência, de que o tempo está passando e minhas férias escorrendo como areia entre meus dedos. "Você precisa aproveitar o verão" me diz esse sentimento "afinal de contas, é a melhor estação de todas."

Passo na frente de algum outdoor da Coca-Cola, que diz "esse é o verão da sua vida" ou coisa parecida, e o sentimento se acentua. Claramente, não estou acima do condicionamento social e da sugestão das propagandas que se alastram por toda nossa sociedade, e sou tão influenciável quanto qualquer outra pessoa, e caio nessa lenga-lenga que faz todo mundo acreditar que o verão é a coisa mais incrível que existe.

Mas... será que é mesmo enrolação? Será que o verão não é a coisa mais incrível que existe? Segundo Hakim Bey, patrono dos anarquistas pós-modernos (aos quais eu devoto grande simpatia) as férias de verão são quiçá a última Zona Autônoma Sazonal que temos hoje em dia. É o único período do ano em que podemos ser livres de fato, sem restrições de horários ou compromissos marcados, e podemos ser apenas nós mesmos, da maneira que bem queremos. As crianças sabem o que é bom, e eu, que passei mais tempo do que deveria trabalhando demais, também sei: mar, calor e praia, mesmo que no fim das contas eu não tome tanto banho de mar assim, sue feito um porco no espeto e fique igualmente tostado por causa do sol.

Em última análise, nós adoramos as férias por que nelas podemos fazer tudo aquilo que não conseguimos fazer enquanto estamos ocupados (não) estudando ou (não) trabalhando. Aula de violão? Por que não! Ir mais em festas e beber mais em bares na Cidade Baixa? Claro que sim! Buscar aqueles objetivos mais elevados? Oh yeah, isso também dá pra fazer!

O problema é que, quando a gente sai de uma rotina altamente estruturada (como a que eu estava vivendo até pouco tempo atrás) para uma completamente livre (como a que eu estou vivendo agora), nós tendemos a ficar desorganizados psiquicamente e acabamos desperdiçando tempo. Eu sei que hoje meu dia foi um belo desperdício de tempo e energia. De vida, eu diria. Obviamente, eu não queria que fosse assim. Na minha cabeça, eu passaria todos os meus dias lendo, escrevendo e treinando Kung Fu, de maneira equilibrada e sensata, com o bastante de cada coisa para que, no final do dia, eu caia na cama com a gostosa sensação de ter usado toda a minha energia em coisas que eu valorizo. Em alguns dias, eu consigo fazer isso, mas em outros... nem tanto. Hoje, eu caí no "nem tanto".

Nesses casos, você precisa pegar o teu tempo pelas aspas e organizar ele você mesmo. Isso é diferente do tempo "normal", quando a gente trabalha ou estuda, por que durante esse tempo são os eventos externos que determinam onde, como e quando nós vamos investir nossa energia psíquica. Durante as férias, existe a possibilidade de você mesmo escolher o que diabos você vai fazer. Digo "existe a possibilidade", por que deixar com que as coisas aconteçam ao seu redor enquanto você não faz porcaria nenhuma também é deixar a estrutura da sua vida ser determinada por fatores externos. Certa vez, ao ler um livreto anarquista sobre caronas, fiquei muito impressionado com essa idéia de "determinar o próprio tempo". A idéia do livreto é bastante anarquista (ou seja, bastante do meu agrado), e bastante ligada à idéia de viajar pegando carona (também bastante do meu agrado). Nesse livro, @s autor@s falam sobre como você pode, durante uma viagem dessas, viver no seu próprio ritmo, e por algum motivo, isso me fascinou. Já parou para pensar como seria sua vida se não tivesse que imperiosamente estar em um determinado lugar, em determinada hora, e poder passar mais tempo olhando as flores selvagens que crescem na beira da estrada? Em outras palavras, já pensou como seria viver o tempo todo de férias? Eu pensei, e achei fantástico. Senti falta de correr mundo outra vez, de viver de acordo com meus próprios parâmetros, desejei viajar para longe, por muito tempo.

Mas eu não preciso fazer isso. Eu disponho de tempo aqui e agora, não é mesmo? Por que não usá-lo bem? Mesmo quando estou ocupado com o trabalho e os estudos, eu posso fazer isso, ainda que não com a mesma intensidade e abrangência das férias. Se não fazemos isso, acabando vivendo a vida que os outros querem que nós vivamos. Se for isso que você quer, perfeito, continue que está funcionando, mas e se não for (como geralmente é o caso)? Aposto que a mera tarefa de acordar e sair da cama de manhã vai ser bastante sofrida (como estava sendo para mim nos últimos dias antes de sair de férias).

OK. Falei bastante sobre essa coisa de "viver no próprio ritmo", de "pegar o tempo pelas aspas", mas o que quero dizer com isso exatamente? De maineira simplificada, é decidir o que se quer fazer durante o dia, e realmente fazer. Pela minha própria experiência, o que normalmente acaba acontecendo é que nossos dias se passam em meio a boas intenções que nunca se realizam, por que estamos ocupados demais vendo TV (ou, como é meu caso, lendo a última tirinha daquele webcomic engraçado). Então, para que isso não aconteça, é bom se utilizar daquilo que os analistas do comportamento (dos quais eu também sou fã #SkinnerFeelings) chamam de estímulos discriminativos. Tecnicamente falando, um estímulo discriminativo é um acontecimento que precede um comportamento, e que aumenta a probabilidade deste comportamento acontecer. De maneira mais simples, pode ser um lembrete: uma agenda, um calendário, um despertador. Qualquer coisa que entre no meio da seqüência de irrelevâncias que normalmente é seu dia e te lembre que há coisas mais importantes para fazer do que coçar o saco. Eu faço isso. Há dias que funciona, e há dias que não é o bastante. Mas, pelo menos funciona na maior parte do tempo, e isso já vale à pena.