terça-feira, 30 de março de 2010

It never gets easy

A maioria das profissões por aí ficam mais fáceis com o tempo. Com a prática, nos acostumamos com as dificuldades, e o que antes nos causava grande impacto começa a passar despercebido. Psicoterapia, entretanto, não é uma dessas profissões, por que o paciente deprimido desta semana te afeta tanto quanto o primeiro que você atendeu. E, francamente, não há como as coisas serem de outro modo: ou você se afeta, ou vira policial. Mais uma vez percebi essa dolorosa necessidade de sentir a dor dos outros, e penso que vou sentir muitas vezes mais. E se quero ser um bom psicólogo, é isso mesmo que tenho que fazer.

sábado, 20 de março de 2010

Um pouco de epistemologia

Ainda inspirado pela última aula de Introdução à Sociologia, venho escrever mais um post. Além de tudo que escrevi no texto anterior, o professor também fez um rápido comentário sobre o que eu poderia chamar aqui de "a natureza filosófica da ciência". Ele não utilizou estes termos, e apenas falou superficialmente a respeito disso, pois estava mais interessado em seguir com seu programa de ensino (o que é muito compreensível). Eu, por outro lado, acho esse assunto fascinante, e como não tenho que seguir programa nenhum (exceto o de atualizar isso aqui de tempos em tempos), vou expandir um pouco a discussão a respeito deste assunto.

Por "natureza filosófica da ciência", refiro-me à sua essência - o que é mais central e importante no processo científico? Em outras palavras, qual seria a melhor maneira de descrevê-lo? Segundo o meu professor, a ciência é, mais do que qualquer outra coisa, a procura e correção dos erros em nossas formulações científicas, e não a "busca pela Verdade", como pessoas mais idealistas poderiam imaginar. Essa definição de ciência é velha conhecida minha, que conheço desde meu segundo semestre de faculdade, e é tão familiar que achei graça em pensar que provavelmente eu era o único naquela sala que sabia de onde ela saiu. Essa definição foi dada por Karl Popper, considerado por muitos o maior filósofo da ciência do século XX, e pai do falsificacionismo. Segundo esta escola de pensamento, para que uma teoria seja verdadeiramente científica, ela deve ser passível de ser "falseada". Com isso, Popper queria dizer que ela poderia ser provada falsa através da experiência. Por exemplo, a afirmação "todos os cisnes são brancos" é científica, por que podemos testá-la empiricamente (na prática), buscando por todo mundo cisnes que não são brancos. Se eu encontrar um só cisne cuja plumagem seja de outra cor, como preto, cinza ou vermelho, a teoria de que todos os cisnes são brancos terá sido derrubada, e necessariamente terá que ser substituída por outra, mais adequada, como "a maioria dos cisnes são brancos"*.

Assim sendo, a ciência não estaria buscando a verdade, mas sim corrigindo os erros em suas hipóteses. O professor sentiu-se muito tranquilo em dizer na aula que "se vocês ouvirem alguém dizer que a ciência busca a Verdade, podem dizer que isso é bobagem". Obviamente, eu não concordo com isso, por que, se concordasse, não estaria escrevendo outro texto a respeito disso no meu blog**. O que me leva a discordar são os pressupostos por trás de tal afirmação. Popper, por mais importante que tenha sido para a Filosofia da Ciência, e por mais inovador que tenha sido neste campo, sempre foi um racionalista, isto é, alguém que acredita que todos os problemas da humanidade (sejam eles abstratos ou concretos, relevantes ou irrelevantes) podem ser resolvidos através do pensamento racional apenas. Talvez os racionalistas de hoje pensem diferente, mas, na época de Popper, isto significa que todas as outras manifestações humanas, como sentimentos, intuições e pensamentos irracionais deveriam ser mantidos de fora do processo de descoberta científica, por não serem estritamente lógicos. Entretanto, toda busca humana, não importa qual seja ela, é fundada em um princípio absolutamente não racional: a fé. Muitos cientistas e teóricos importantes no passado fizeram afirmações negativas a respeito da fé, dizendo desde que ela é uma incomodação até que ela é uma praga da qual a humanidade deverá se livrar um dia, e muitos outros agiram nesse sentido, entre os quais se incluem Popper. 

Só que, no fim das contas, não há como fugir da fé. Como eu mesmo disse antes, os racionalistas acreditam no pensamento racional. Como eles justificam essa crença? Por que é racional? Sinto muito, mas não é possível fundamentar toda a ciência e seus frutos em uma falácia como este argumento circular (ou petição de princípio, como os filósofos preferem chamar). Assim sendo, por mais que a desprezemos ou ignoremos, sempre voltamos à fé - uma crença absoluta, que não precisa nem pode ser justificada racionalmente, e na qual só nos resta acreditar. Os ateus modernos como Richard Dawkins entraram em uma campanha para derrubar a fé e substituí-la pela ciência racional, porém tudo que conseguiram fazer é criar uma nova fé, em volta de um novo ídolo. Por isso, mesmo que o processo científico consista na procura e na correção de erros, isto é apenas parte dela, por que, para envolver-se em tal empreitada, é necessário que tenhamos, no mínimo, o ideal de aproximarmos cada vez mais da Verdade. Talvez, poderia se argumentar, que tal Verdade, com V maiúsculo e absoluta, não exista, ou que esteja além do alcance dos seres humanos, e talvez tal argumento seja correto. Mesmo assim, não fazemos ciência por que concluímos racionalmente que é o melhor curso de ação a se tomar, e sim por que buscamos algo mais sólido e profundo no universo.














* Há muitas outras implicações e corolários da escola popperiana de pensamento, como a força das teorias, mas não acho que este seja o post para falar delas.

** Eu poderia ter discordado do professor no mesmo momento que ele falou isso, porém, como eu não queria criar uma discussão epistemológica de proporções épicas e jogar o cronograma dele pela privada, preferi ficar quietinho no meu canto e vir chorar aqui na minha própria "cuddle box".

sexta-feira, 19 de março de 2010

Histórias que entretêm - Atestado de Insanidade

"Doutor, eu tenho um sério problema. Acho que é alguma coisa de sistema nervoso, o médico lá do postinho até me mandou fazer um elétrico da cabeça, mas não mostrou nada. É assim, doutor, toda vez que eu volto pra casa, quando eu passo pela porta da garage, eu penso que ela vai cair na minha cabeça. É que é assim, doutor. Quando a minha mulher engravidou do meu primeiro filho, eu quis comprar uma casinha e me mudar, mas minha mãe não deixou. Sabe como é, ficou preocupada, me disse que era perigoso, que iam me assaltar, que iam me matar, e de tanto que ela me incomodou, eu fiquei por lá mesmo. Só que não tinha espaço na casa, doutor, então a gente construiu um segundo andar pra casa, pra gente ter um lugarzinho nosso e ainda ficar perto da mãe, que ficou toda babona por causa do neto. Era o primeiro da família, né doutor? Todo mundo fica todo dengoso. Quando o Maicou nasceu, ela até parou de fazer faxina pra poder cuidar dele, ficar fazendo sopinha pra ele, mingau, negrinho... coisa que ela nunca fez pra mim, e olha que eu adoro negrinho, tô sempre pedindo pra ela, mas ela sempre me diz 'onde já se viu homem feito como tu ficar pedindo doce pra mãe?'. Eu fico todo envergonhado, por que ela até que tem razão, só que, bah, quando eu era piá eu pedia pra ela e ela também não fazia! Então, doutor, como eu tava te dizendo, a gente construiu um segundo andar. Fui eu quem fiz quase toda a obra sozinho: comprei os material, misturei o cimento, assentei os tijolo, e, não querendo me gabar, ficou muito bom. Só que teve um probleminha, e a parede do lado da garage ficou meio torta. É a única que ficou assim, doutor, mas ficou assim. Na hora que eu botei os tijolo eu nem notei, só que depois que já tava pronto eu vi. Ah, eu pensei 'nem dá nada', e até agora não deu nada mesmo. Só que, bah doutor! Agora toda vez que eu volto do serviço, eu entro na garage com minha moto, que eu sou motoboy, eu olho de revesgueio praquela parede e fico pensando se ela não desaba em cima de mim quando bem na hora que eu tô entrando, ou em cima dos meus filhos quando eles brincam ali no pátio. Eles tão quase indo pra escola, a mãe deles já leva eles pra uma creche e eles ficam lá o dia todo, por que minha mulher tem que trabalhar também, né? Ela tá trabalhando numa firma de advocacia no centro como secretária, tá ganhando bem, tanto que é ela quem paga a creche das criança. Só a minha mãe que não gosta muito disso, por que sabe como é velha, doutor, ela quer cuidar dos netos, fica dizendo que cuidam mal dos netos dela lá, fica xingando a gente por não confiar nela e tal... Eu até preferia deixar os piá com ela, ia ser mais barato, minha mulher não ia ter que gastar duas passagem de ônibus a mais pra levar e buscar eles, só que, doutor, a gente tá meio ressabiado com a minha mãe. É que é assim, ela diz que quer cuidar dos guris, mas quando a gente deixa eles com ela, eles ficam muito estranho, doutor. O Maicou é tri falador, se ele tivesse aqui ia ficar puxando papo sobre qualquer coisa contigo, e olha que ele nunca te viu na vida! Só que, é só ele ficar um dia com a vó dele que ele fica quieto, se escondendo pelos canto, fazendo cara de desconfiado. Eu pergunto pra ele 'ô Maicou, que tu tem guri? O gato comeu tua língua?', e ele não fala nada. E outra vez, eu vi um roxo no braço da Sara Diésica, a minha do meio, perguntei pra ela de onde saiu aquele machucadão, era enorme, doutor, o senhor tinha que ver pra acreditar, e ela disse que caiu da escada. Fui perguntar pra minha mãe que que tinha acontecido, e ela me disse que ela e o Jonson se pegaram no sopapo e ela ficou com aquele roxão por causa dum suco dele, só que o Jonson é menor que ela! Como que ele ia fazer um negócio daqueles? Não tem como, doutor, não tem como. Mas o pior é esse negócio da parede. Doutor, me fala a verdade, eu tô ficando louco?"

Vida Dura (Parte 27)

Notei que, quando se passa muito tempo viajando pelo exterior, especialmente mochilando, costuma-se perder a noção do que acontece em sua terra natal. Algum leitor mais sarcástico, ao ler esta última frase, provavelmente soltará um sonoro "Bazzinga!" por causa da obviedade de minha afirmação. Claro que, quando se esta viajando em um país estrangeiro, se perde a noção do que acontece em casa, por que, para começo de conversa, não se tem mais acesso aos mesmos meios de comunicação, e se tem, eles custam muito mais caro (tentem ler sua Veja toda semana dormindo todas as noites em uma cidade diferente e viajando por 15 horas em ônibus sem banheiro). Entretanto, quando digo isso, não estou pensando nos escândalos políticos que assolam Brasília, ou nos ensaios de escola de samba onde a Nana Gouveia mostra a calcinha, mas nas coisas mais sutis.

Estou pensando na música.

Pois, vejam bem, quando se viaja, você pode pensar "eu deveria ter trazido meu MP4" ou "eu preferia estar ouvindo Queen ao invés dessa música sobre cereais", mas nunca, NUNCA se pensa "qual será a música que está bombando no carnaval esse ano?" Há um motivo para as coisas serem assim: essas músicas são irrelevantes. Tudo nelas é repetitivo, retardado e fácil de lembrar, e é justamente por isso que elas "bombam" - não há como esquecê-las. Por sorte, quando chega acaba o carnaval e o verão, elas vão para o mesmo lugar que os mosquitos no inverno e somem de nossa memória, para, na próxima temporada de praia, quando pancadões dançantes são tão ou mais necessários do que caipirinha, serem substituídos por outra música igualmente irritante.

Enquanto eu estava na Bolívia, eu esqueci da existência desse fenômeno. Para mim, naqueles dias no altiplano andino, o Brasil era apenas uma terra distante, ainda que fosse a minha terra, e tudo que lembrava dela eram as pessoas que me eram caras. Isto é, até o dia em que eu voltei para Caxias do Sul, e meu pai fez questão de pegar seu celular, dizer "olha a música que tá fazendo o maior sucesso agora" e por Rebolation para tocar. Foi ali que me caiu a ficha e eu pensei: é, tô de volta ao Brasil. Passara os últimos dois meses ouvindo coisas que dificilmente classificaria como "boa música" (vocês sinceramente pensaram que eu inventei a história de "música sobre cereais"?), mas era uma coisa muito, muito diferente do que encontrei por aqui quando voltei. O "cancionário" boliviano e peruano está longe de ser algo de alta qualidade, porém tinha um ar mais honesto, como se realmente fizesse parte da cultura local. "Rebolation", por outro lado, é bem diferente. Primeiro, ela me parece ser o equivalente musical do crack - todo mundo sabe que ele destrói o cérebro e o corpo de quem usa, só que, depois que se provou (ou ouviu) uma vez, a gente já se perdeu no vício e precisa buscar logo a próxima dose. Só hoje, eu ouvi essa música do demo umas três ou quatro vezes.

E mais do que essa qualidade viciante, Rebolation tem algo mais. Eu não sei o que é, só que toda vez que eu ouço a música ou quando eu vejo o clipe, tenho uma estranha sensação de prazer. Não consigo descrevê-la muito bem, exceto que é o tipo de prazer que alguém sentiria de assistir um trem lotado de passageiros desacarrilhar, pegar fogo e explodir em câmera lenta: é algo horrível e que provavelmente vai te deixar traumatizado, mas tu quer perder um segundo sequer da ação. Olhando todas aquelas pessoas dançando no mesmo ritmo alucinado, gritando "rebolation é bom bom bom!" traz à minha consciência imagens ancestrais, dos bacanais e de todos rituais alucinados do passado, e a figura não tão ancestral do terceiro filme de "O Senhor dos Anéis", onde o Regente de Gondor grita para seus súditos que tudo está perdido, com a diferença que, na minha cabeça, ele grita "é a decadência, é a decadência, seus macacos sem livre arbítrio!", e que não há nenhum Gandalf para nocauteá-lo com um tacape branco e botar ordem no chiqueiro outra vez. Sim, é o prazer mórbido de ver tudo reverter à selvageria, querer fugir porém não conseguir, e rir ao invés de chorar por que é mais produtivo.

Algum cético, ao ler isso aqui, provavelmente pensará "meu Deus, tudo isso por causa de uma música ruim?". E ele provavelmente está certo. Eu vou dormir. Pensando que o Rebolation é bom bom bom.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Umas idéias sociológicas

Para todas as pessoas que não sabem meu cronograma (o que significa todo mundo menos eu), decidi dedicar o meu sétimo semestre de faculdade ao estudo das Ciências Sociais. Por isso, ao invés de pegar apenas eletivas do meu curso, decidi cursar Introdução à Sociologia e Introdução à Antropologia*, ambas fora do Instituto de Psicologia. E como era de se esperar, esta oxigenação intelectual está sendo bastante benéfica, especialmente no que diz respeito à circulação de novas idéias na minha mente.

Acabo de voltar da minha segunda aula de Sociologia, na qual o professor explicou o conceito de "organismo" na obra de Émile Durkheim. Segundo este autor, que usou a Medicina Experimental como fonte de inspiração, a sociedade é um organismo - não de maneira metafórica, mas de maneira literal. Isso quer dizer que o organismo social é composto por diferentes órgãos, que desempenham diferentes tarefas, porém, visam a um mesmo fim. Numa sociedade menor e menos desenvolvida, estes órgãos seriam mais simples, e condensariam mais tarefas essenciais, enquanto que em sociedades maiores e mais complexas, estas tarefas tenderiam a ser realizadas por instituições diferentes. Para usar um exemplo bastante ilustrativo, pensemos na figura do xamã. Em uma sociedade tribal, o xamã é o responsável por curar os doentes, guiar os fiéis, dar aconselhamento para o cacique e prever as chuvas e secas em sua região. Em nossa sociedade, esses papéis se sofisticaram e foram delegados a diferentes profissões: o médico cura os doentes, o padre guia os fiéis, os cientistas políticos orientam os governantes e os metereologistas fazem a previsão do tempo (ou pelo menos tentam).

Essa diferenciação de trabalhos gera outras coisas além da especialização profissional. É relativamente fácil manter uma sociedade tribal coesa e unida, pois todos se identificam com os demais, por que, afinal de contas, todos são fisicamente parecidos, pensam parecido e fazem coisas parecidas. É uma identificação mecânica, para usar os termos do próprio Durkheim. Já numa sociedade mais avançada tecnologicamente, esses laços de identificação encontram-se enfraquecidos, justamente por causa da grande diferenciação existente. Portanto, a identificação mecânica não é mais suficiente para manter a unidade social, e precisa desenvolver uma identificação orgânica, e é nesse ponto que o conceito de "organismo social" começa realmente a fazer sentido. Como eu disse anteriormente, para Durkheim, a sociedade é um organismo composto por vários órgãos distintos, que realizam diversas tarefas diferentes, e que servem a um propósito único. Porém, para impedir que eles não se separem e se tornem sociedades à parte, é necessário que se mantenha sempre, em todos os órgãos, uma consciência da importância de seu papel para a sociedade. Para ilustrar como isso funcionaria, uso o mesmo exemplo que o professor usou: para manter a sociedade unida, seria necessário fazer com que o cara que cola os rótulos de cervejas em suas respectivas garrafas perceba quão importante é sua tarefa, pois assim ele impede que as pessoas bebam Nova Schin pensando que é Bohemia, ao mesmo tempo em que o resto da sociedade reconheça o valor disso (por que, convenhamos, Nova Schin é muito ruim!). Para Durkheim, que foi pintado pelo professor como o "anti-Marx", por causa de suas tendências conservadoras, isso seria suficiente para manter uma sociedade relativamente complexa unida e sem perturbações.

Certamente é uma idéia interessante, e com uma lógica interna razoável. Contudo, saí da aula pensando na seguinte hipótese: não seria possível fazer com que um dos órgãos inflasse em importância, e mesmo assim manter a sociedade unida? Explico. Da maneira como eu vejo, na teoria de Durkheim, a unidade de uma sociedade não depende de todas as suas instituições terem tarefas igualmente divididas, e sim em todas terem uma opinião parecida a respeito de si e das demais. Portanto, é plausível pensar que, em uma socidade X, uma determinada classe desenvolva uma opinião um tanto quanto narcisista de si própria, e convença as classes restantes de que ela está certa. Diante de seu sucesso dentro de sua própria nação, esta classe poderia tornar-se ainda mais megalomaníaca, e decidir impor seu autoconceito para as sociedades vizinhas, começando uma guerra. Como exemplo disto, estou pensando no sempre presente exemplo da Alemanha Nazista, mas também no da França Napoleonica e de outras ditaduras expansionistas. Claro, nesses casos, a classe dominante se deu ao trabalho de convencer as demais classes de que elas também eram superiores, e que seus esforços são parte de uma grande tarefa. Eric Hoffer, sociólogo** americano que escreveu sobre movimentos de massa e mudança social, diz em seu livro "The True Believer", que, para que um movimento religioso, nacionalista ou revolucionário deslanche, é necessário que seus seguidores encontrem nele uma causa para viver e morrer, e que essa causa não seja apenas um acontecimento terreno, pontual e limitado, e sim algo divino, eterno e ilimitado, que os tire de sua vida presente, miserável e triste, e os leve para uma vida futura cheia de glórias.

Alguém poderia me perguntar agora "mas Andarilho, esta classe dirigente e megalomaníaca não encontraria oposição?" Eu respondo, baseado na História e nos escritos do Eric Hoffer, que sim. Entretanto, só por encontrar oposição não significa que eles não vencerão esta oposição. Além disso, para levar a bom termo uma revolução, não é necessário convencer toda a sociedade: basta apenas converter as partes mais estratégicas dela. Segundo Hoffer, as duas mais importantes, em ordem cronológica (já me explico) são os intelectuais e as massas. Disse que a importância dessas duas classes é cronológica por que, para revoltar as massas, que são efetivamente a força bruta de qualquer movimento social, é preciso que um grupo de intelectuais dê a elas um motivo para sentirem-se indignadas com sua situação atual. Depois que isto é feito, pode-se relegar os intelectuais a um segundo plano, pois sua função de liderança é tomada por indivíduos que Hoffer denomina de "fanáticos", e depois, pelos "homens de ação". O que não se pode fazer é deixar de afagar o ego dos intelectuais nunca, pois, se descontentes, eles podem fomentar outra revolução, mais favorável a eles. Agora, se eles forem mantidos em um estado de contentamento, onde a opinião deles é ouvida, mesmo que só nas aparências, tudo está tranquilo, por que para eles, é só isso que importa: afagar o ego. Segundo Hoffer, que não tinha uma opinião muito elevada da natureza humana em geral, o que importa para a classe intelectual é estar bem de vida, e é por isso que eles incitam rebeliões - não por amor ao povo simples e sofredor, mas por que eles ressentem o fato de não serem respeitados o suficiente pelas classes governantes.

Ter lido "The True Believer" me fez escutar a aula de Sociologia hoje com outros olhos ouvidos. De um lado, temos a teoria de Durkheim, que prega uma sociedade estável, onde todos sabem o seu lugar e creem na importância de seu trabalho. Do outro, temos Marx, que defende a tese de que as classes trabalhadoras são exploradas, e por isso, devem tomar o poder da classe burguesa através da força de uma revolução. Por muito pouco não atrapalhei a aula e perguntei qual era a situação financeira destes dois sociólogos quando escreveram suas teorias. Será que Marx não era um homem inteligente, mas com raiva do fato de ser pobre e pouco valorizado por seus pares? E Durkheim - será que a vida dele não era confortável demais? Bom, não sei, mas fico pensando mesmo assim.

Para finalizar este post um tanto quanto confuso na minha opinião, gostaria de refutar pelo menos parte da teoria de Durkheim***. Para ele, uma sociedade ideal seria uma que se mantém estável e sem mudanças significativas por muito, muito tempo - idealmente para sempre. E, ao contrário do que poderia se pensar a respeito, é possível estruturar uma sociedade desta maneira, comprando a lealdade dos intelectuais através de cargos no governo e outros mimos. Foi assim, segundo Hoffer, que o Império Romano e o Império Chinês se mantiveram quase imutáveis por milênios. Só que, com a falta de mudança, vem a estagnação, e com ela, vem a longa e lenta decadência, que não só acaba matando a civilização anteriormente estável, como também destrói muito de seu legado, de uma maneira que poderia ter sido evitada se se tivesse dado a chance de alguns movimentos de massa remodelarem a sociedade. Como diria Thomas Jefferson, "a árvore da liberdade deve ser regada de quando em quando com o sangue de tiranos e patriotas". Talvez ele estivesse mais certo do que ele mesmo imaginava.










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* Na verdade, o nome correto seria "Antropologia - Fundamentos", mas eu acho esse nome muito feio, e chamo a cadeira do jeito que eu quiser no meu blog.

** Ele não é um sociólogo no sentido estrito do termo, já que nunca fez faculdade de Ciências Sociais nem nada (ele era estivador, na verdade), mas como ele escreveu vários livros este assunto, acho que é bem tranquilo atribuir este título para ele, por mérito individual.

*** Refutando a teoria de um dos Pais da Sociologia - se isso não é narcisismo desmedido, eu não sei o que é.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Pensando sobre o Trote

E essa semana foi a semana do trote na Psicologia da UFRGS. Na verdade, ainda é a semana do trote, por que amanhã tem um pouco mais. Não sei por que, todo início de ano, toda matrícula da turma nova, toda primeira semana de aula, eu sinto uma vontade incontrolável de ir lá, me meter no meio da gurizada nova, bater um papo com eles, jogar um pouco de tinta no cabelo deles e ver o que eles vão virar depois de um tempo na Psicologia.

Acho que é isso que me atrai: a maleabilidade da turma que entra. Quando se é calouro, no primeiro ano de faculdade, as coisas ainda são muito amorfas - ninguém sabe nada sobre as cadeiras, sobre o curso, sobre os professores, sobre o instituto, e por isso, ninguém tem opinião formada. Eu digo "opinião", mas talvez fosse melhor dizer "personalidade" formada. Por que é isso mesmo - a gente vai moldando nosso Self com os anos de estudo. Por causa dessa ignorância, no começo, todo mundo é "igual", pelo menos no que diz respeito à Psicologia. Com o tempo, porém, isso muda bastante. Aquela turma de 40 pessoas largamente indiferenciadas, depois de um ou dois semestres, vai virar uma turma de 35, com opiniões muito distintas sobre muitas coisas. Com as aulas, uns vão perceber que gostam de clínica e que querem se tornar psicoterapeutas; outros, vão descobrir que o negócio deles é fazer pesquisa com ratinhos brancos, enquanto que outros vão chegar a conclusão de que o que eles querem da vida é trabalhar com populações de rua, se envolver em políticas públicas ou ficar discutindo o sexo dos anjos de um ponto de vista psicanalítico. E por fim, alguns vão perceber que Psicologia não é o que eles querem, e vão largar o curso por isso.

Nesse processo, a turma vai se distanciando. Aquele amontoado de gente que ia junto para todas as partes da universidade no primeiro semestre (inclusive para o RU, fazendo com que eu os xingue bastante enfaticamente por incharem a fila) começa a ir sozinho, cada um para o seu canto, até que um dia eles se formam e acaba a faculdade. Do jeito que eu falei, parece ser bastante triste, mas as amizades que realmente valeram a pena continuam, mesmo depois do fim.

Acompanhar tudo isso é algo extremamente fascinante. Vejo a minha turma refletida nos nossos bixos, nos bixos deles, e agora, nos bixos deles também, e apesar das grandes diferenças que há em cada uma dessas turmas, eu sempre vejo pelo menos uma coisa em comum a todas elas: uma jornada, que começa cheia de dúvidas, incertezas, e que continua cheio delas até o fim. Porém, a cada passo dado, aumenta a firmeza do pé que pisa, se aprende alguma coisa mais, até que se percebe que não se é mais um bixo, e sim um veterano. O trote é um ritual de passagem tanto para o primeiro ano, que entra, quanto para o segundo, que os recepciona. Ao apresentar o calouro à faculdade, alguém que até pouco tempo atrás era novato conquista o direito de ser chamado de veterano.

E mais fascinante do que acompanhar tudo isso é poder participar em tudo isso. Creio que, em última análise, a decisão de para que lado crescer cabe a cada um de nós, estejamos no primeiro ou no sexto ano. Entretanto, eu, por estar a mais tempo nesta bagunça que é a Psicologia, posso tentar ajudar aqueles que chegam agora, e mostrar-lhes caminhos que me foram importantes e aqueles que eu preferi evitar. Digo outra vez que, no fim das contas, são eles quem vão escolher para onde ir, mas eu pelo menos fiz a minha parte de deixar as coisas mais fáceis para eles, como os meus veteranos (pelo menos alguns deles) fizeram para mim. E, fazendo isso, eu também acabo mudando, por que por mais que eu tenha deixado de ser aquela massa intelectual amorfa de três anos atrás, ainda tenho muito espaço para crescer.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Começou

Pois é, hoje começam as aulas na UFRGS, e hoje também começa meu estágio no ambulatório. Infelizmente, este começo está bastante lento, por que não tenho nenhum paciente marcado para esta manhã, e minha primeira aula é só às cinco da tarde. Tomara que isso não se torne um padrão ao longo do semestre, ou eu vou ficar louco de tédio.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Histórias que entretêm - O que vale um peão?

"Ei! Ei, Briggs! Ficou sabendo da última?" disse em meio a um sussurro Myers para seu companheiro. "Fique quieto, Myers. Você sabe que não é permitido conversar enquanto montamos guarda" respondeu o outro, um pouco irritado. "Bah! Como se alguém respeitasse essa regra! Temos que ficar em pé, plantados na frente de uma porta escura por 12 horas, sem saber o que há atrás dela, nem ao menos conversar, como se isso fosse possível! Mesmo que o capitão passasse por aqui agora, ele não ia fazer mais do que olhar feio para a gente e seguir em frente!" vomitou ainda mais irritado o primeiro. "Quem quer que inventou essa regra deveria ter um motivo", disse Briggs, de forma um pouco mais conciliadora do que da primeira vez, como se quisesse apaziguar os ânimos de Myers, a quem considerava um bom amigo. Aparentemente, não teve muito sucesso em seu intento, pois obteve apenas um silêncio emburrado como resposta.

Depois de mais alguns minutos nessa situação, Briggs resolveu ceder, e quebrou o desconfortável silêncio. "Qual é a última então, Myers?". "Nada de mais", respondeu Myers, "não acho que um soldado tão responsável do Exército Imperial como você se interessaria por coisas tão baixas quanto o resto de nós, que conversamos quando montamos guarda". "Myers, me desculpe, mas você sabe como eu sou preocupado com regulamentos, sempre fui, desde o Treinamento Básico, que você certamente se lembra! E, depois dos últimos acontecimentos, eu fiquei ainda mais preocupado. Se não tomarmos cuidado, estes rebeldes nos derrubam". Diante dessa confissão, Myers deixa a raiva um pouco de lado e entra outra vez em seu modo conversacional, e pergunta debochadamente "e certamente seguir a regra de não falar durante a guarda vai livrar-nos deste mal, não é mesmo?". Ele gostava muito de Briggs, desde o primeiro dia de treinamento, naquele distante planeta desértico, e admirava seu senso de dever e justiça. Entretanto, às vezes ficava pasmo diante dos extremos a que ele chegava por ser tão consciencioso. "OK, OK, você está certo!" respondeu Briggs, com o típico tom de voz que utilizava quando percebia estar errado, fazendo Myers rir, "você está certo, não falar durante o período de guarda provavelmente não vai salvar o Império, mas há muitas outras regras que ninguém segue e que fazem muita diferença. Sabe como aquele traidor rebelde entrou na base em Danuta e roubou os planos da Estrela da Morte? Se escondendo em uma caixa de madeira que disseram conter uma encomenda do comandante da base. A regra 45B do Manual do Stormtrooper diz explicitamente que 'todas as caixas fechadas que adentrarem bases militares de nível 4 de segurança' como a que o rebelde invadiu 'devem ser revistadas por pessoal autorizado, para evitar infiltrações inimigas de qualquer espécie'. O livro é bem claro. Por que ninguém fez o que estava escrito nele? Por que ninguém queria irritar o comandante, que tinha fama de ferrar com quem quer que se metesse em seus negócios, especialmente soldados rasos. E o que aqueles soldados conseguiram com isso? Nada, por que o rebelde, assim que percebeu que estava sozinho num depósito, saiu da caixa, matou todos os stormtroopers da base, roubou os planos da nossa arma mais poderosa e os levou até o comando rebelde, que então lançou os seus X-Wings contra ela, e matou pelo menos quinhentos mil soldados e passageiros, tudo isso por que um imbecil não quis seguir as regras!" As últimas frases não foram tanto ditas quanto gritadas, pois aquilo era algo que deixava Briggs profundamente irritado. Ele é um daqueles indivíduos que acreditam que muitos males poderiam ser evitados se todas as pessoas calassem a boca e seguissem as ordens dadas por alguém mais inteligente. Admirava incondicionalmente o Imperador Palpatine, e entrara no exército por sua causa, pois "queria servi-lo onde houvesse mais serviço", como costumava dizer.

"Está bem, você me convenceu" disse Myers em resposta "inspecionarei pessoalmente todas as caixas que entrarem nesse lugar de agora em diante!" Ele era um sujeito muito mais relaxado e tranquilo que Briggs. Respeitava o Imperador, mas não era tão reverente quanto seu amigo. Quando entrou para o exército, o fez pensando nas muitas aventuras e viagens que faria a serviço do Império, realizando atos de heroísmo e conhecendo lugares exóticos. Contudo, para seu azar, logo após completar seu treinamento básico, foi enviado para alguns dos lugares mais monótonos e desinteressantes da galáxia, o último deles sendo aquela base em Gromas 16, que, além de ser extremamente maçante, tinha como agravante o fato de ninguém lhes explicar o que acontecia por ali, e o que exatamente protegiam, especialmente atrás daquela porta ali. Era uma porta particularmente famosa entre os stormtroopers da base, pois era a mais bem guardada de todo o planeta: sempre havia pelo menos dois soldados a guardando, e para chegar até ela, era necessário passar por um longo e confuso sistema de corredores, elevadores e checkpoints. O que quer que estivesse ali atrás, certamente era muito valioso. Toda essa preocupação, unida a todo aquele mistério, fizeram surgir muitos rumores entre a soldadesca, que eram discutidos durante as folgas ou na hora das refeições, e relembrados durante as longas horas de guarda, como que para distrair a própria mente da chatice que era aquela tarefa. Aqueles mais afeitos a fantasias imaginavam defender alguma relíquia histórica de grande valor, como o Tesouro dos Jedi ou o primeiro sabre de luz de Darth Vader, enquanto que os mais realistas teorizavam proteger algum projeto militar que pudesse dar alguma vantagem ao Império em sua luta contra os rebeldes. Os irreverentes, por outro lado, diziam que, por trás daquela porta, estavam as roupas de mulher com que o General Rom Mohc se travestia quando ninguém estava olhando. Myers estava neste último grupo. Claro, ele levava seu serviço à sério, porém apenas quando estava em serviço. Por isso, quando tirava seu pesado capacete da cabeça, tirava com ele todas as preocupações referentes ao ofício de Stormtrooper, e ia tomar sua cerveja como se fosse qualquer outra pessoa da galáxia. O exército imperial poderia não ser tão aventureiro quanto ele desejara no início de sua carreira, nem Gromas 16 o lugar mais empolgante para se estar em uma galáxia cheia de batalhas, mas Myers preferia viver "no aqui e no agora". Ganhava um soldo razoavelmente bom, e aquela lua, apesar de isolada e sem graça, tinha alguns dos melhores bares que ele já frequentara. Por isso, sempre que podia, ia para algum deles para gastar os seus trocados com alguma bebida mais refinada, pois isso era o máximo de diversão que precisava.

Briggs não era assim. Aliás, se já existiu uma pessoa mais diferente de Myers, esta pessoa seria o próprio Briggs. Ao contrário de Myers, para qualquer lugar que ele fosse, ele era um "soldado do Imperador", preocupado com sua missão e com os regulamentos. Não gostava de sair para beber com Myers, pois prefiria ficar em seu alojamento, lendo muitos livros, na sua maioria de história do Império, manuais de treino e regulamentos. Lia tanto, e com tanta paixão, que os outros stormtroopers de seu regimento o consideravam um chato, fazendo com que seja ainda mais curioso o fato dele ser tão amigo de um homem como Myers. Como já foi dito, os dois se conheceram durante o treinamento básico. Alguns dias após terem se alistado, foram levados até Tatooine, onde passaram seis meses de suas vidas atirando, rastejando e se escondendo no meio da areia escaldante. Não era um serviço fácil, muito menos seguro: logo na primeira semana, três recrutas se perderam no deserto, e outros dois foram devorados por um dragão de krayt. Muitos mais vieram a morrer ao longo do treinamento, por estes ou por muitos dos outros perigos oferecidos pelo deserto de Tatooine. Foi ali que Myers e Briggs se conheceram. Ambos eram jovens, e estavam com medo. Por causa do ataque do dragão de krayt, eles fizeram um trato de sempre cuidarem um do outro. Quando um dormia, o outro ficava acordado, para ter certeza de que não seriam tomados de surpresa; se a comida era pouca, eles repartiam; se um deles se ferisse, o outro fazia os primeiros socorros. E, quando as coisas estavam mais calmas, eles conversavam sobre suas vidas antes do exército. Uma vez mais, os dois tinham histórias muito distintas. Enquanto Myers cresceu livre e solto com seus cinco irmãos numa fazenda em Dantooine, Briggs foi criado sozinho pela mãe em um pequeno apartamento num bairro pobre em Corruscant. Durante sua infância, Myers caçou animais selvagens, se escondeu no meio de florestas e aprendeu a montar. Briggs, por sua vez, foi obrigado a envolver-se em brigas de rua, fugir da polícia e, algumas vezes, catar comida no lixo. Os dois se complementavam. O que um era incapaz de fazer, o outro dominava com maestria. Foi assim que eles sobreviveram os seis meses em Tatooine. A eficiência dos dois era tão notável que, ao se formarem, o comandante do campo fez o que pode para mantê-los juntos, sabendo que, unidos, eles seriam melhores soldados. E foi assim que, juntos, eles foram postos a serviço da 100ª Legião de Stormtroopers. Com ela, não conheceram nem muitos lugares interessantes, nem lutaram em muitas batalhas, porém, fortaleceram ainda mais sua amizade.

"Mas então, você sabe ou não sabe da última?" disse Myers outra vez, querendo mudar de assunto. "Não, eu não sei qual é a última" respondeu Briggs, rindo, pois se achava divertido o prazer que Myers tinha em contar fofocas "qual é?". "Bem" começou Myers, notando o interesse do amigo "acho que ouvi uma teoria bem interessante a respeito do que pode estar por detrás desta maldita porta". "Eu achei que estivessemos guardando as roupas de mulher do nosso estimado general" respondeu Briggs, um pouco cético. Várias vezes antes teve esta conversa com Myers, e ao final de todas, foi obrigado a ouvir alguma piada incrivelmente estúpida. Não estava disposto a passar por isso de novo. "Sim, sim, o vestido de Rom Mohc com certeza está ali, mas há também outra coisa, e essa coisa realmente faz sentido", retorquiu Myers. Pelo seu tom de voz, Briggs percebeu que, pela primeira vez em muitos meses de guarda, estava falando sério. Ainda assim, ele não estava com muita paciência, e antes mesmo que Myers pudesse explicar sua descoberta, disse "bom, antes de me dizer o que há atrás desta porta, quero saber sua fonte de informações. Se você me disser que descobriu isso conversando com aquele droide quebrado do terceiro quadrante eu enfio esse blaster no seu...". "Calma, calma!" exclamou Myers, com medo de perder a atenção de seu interlocutor "A informação é quente. Sabe o Capitão Eco, o que lutou nas Guerras dos Clones junto com Darth Vader? Pois é, foi ele quem me falou sobre a teoria dele. Você mesmo sabe que ele é um cara confiável, e não teria por que inventar histórias para recrutas como nós". Briggs nada disse, porém, fez um sinal com a cabeça, que entre os stormtroopers queria dizer "estou te ouvindo" (aqueles capacetes eram um grande empecilho para a comunicação não-verbal, e por isso, seus usuários tiveram que desenvolver métodos alternativos de expressar-se com eles). Encorajado, Myers continuou, agora com um tom mais professoral. "Veja bem, estamos em Gromas 16, um lugar completamente desinteressante desde muitos pontos de vista: estamos longe do centro da galáxia, isso aqui não é um entreposto comercial importante, nem um ponto militar estratégico. Então, por que diabos o Imperador mandou uma legião inteira defender esta lua miserável? Qual é a única coisa que fazem por aqui?" perguntou ele. "As minas" respondeu ele mesmo, sabendo que Briggs ia ficar olhando para ele impassivelmente. "Estamos defendendo as operações mineiras deste lugar. Isso não é segredo para ninguém. O porquê defendemos, contudo, é outro problema. Uma pessoa inteligente como eu poderia supor que o metal extraído aqui é bastante valioso. O problema dessa lógica é que nunca vimos nenhuma nave cargueira sair daqui carregada com mineral - tudo é levado para o outro lado da base, que é quase tão bem guardada quanto esta. O que eles fazem lá? Refinam o metal, e fazem alguma coisa com ele. O Capitão Eco, por ser menos rasteiro que a gente, já pode entrar lá, e viu, meio de relance, um projeto em cima de uma mesa". Nesse ponto, Myers parou de falar, apenas para forçar Briggs a mostrar-se interessado na história, o que, efetivamente, ele fez. "E que projeto era esse, Myers?" perguntou Briggs, entre relutante e curioso (sabia que Myers fazia aquilo de propósito). "Era uma armadura mecânica!" disse Myers finalmente, triunfante. "O metal extraído aqui, pelo o que me disse o capitão, é extremamente resistente, pode resistir milhares de tiros de blaster" continuou ele "e uma arma dessas nos daria ainda mais vantagem sobre os rebeldes. Depois que a Estrela da Morte foi destruída, tanto o Imperador quanto o exército começaram a procurar maneiras de derrotar estes malditos - antes era brincadeira, agora a coisa é para valer. Por isso, estão pesquisando novas armas e maneiras de destruir a Aliança, para se vingarem pelo o que eles fizeram conosco, e esta armadura, seria o prego no caixão deles" finalizou Myers, de maneira bastante dramática.

Briggs ponderou silenciosamente o que ouvira. Apesar de ser um salto lógico e tanto, o que Myers lhe contara fazia sentido, e isto, mais do que as histórias estapafúrdias que ouvira no passado, o deixou com muitas dúvidas. "Mas quem usaria estas armaduras?" perguntou por fim. "Como é que eu vou saber? O Capitão Eco viu só o projeto, e muito rapidamente. Eu acho que vão ser soldados treinados especialmente com este fim. O Capitão, porém, tem a estranha sensação de que elas serão pilotadas por droides" respondeu Myers. "Droides?! Quem em sã consciência usaria droides como soldados depois das Guerras dos Clones?" exclamou Briggs. "Eu que não seria" respondeu calmamente Myers "ainda assim, isso é só uma intuição do capitão. Ele diz que sente uma coceira no braço sempre que há um droide de batalha por perto. Não sei se isso é sinal de alguma doença no cérebro. Só sei que ele saiu vivo de um dos conflitos mais sangrentos da história da galáxia, enfrentando milhares de droides. Talvez ele esteja certo no fim das contas". Neste momento, o altofalante do corredor se ligou, e passou a despejar sua voz metálica e fria sobre Myers e Briggs: "Alerta vermelho! Alerta vermelho! A base foi invadida! O invasor é um homem branco, de aproximadamente um metro e oitenta de altura, vestindo um colete à prova de blaster, fortemente armado, está se dirigindo até a porta 72, e deve ser morto imediatamente. Repetindo, ele está se dirigindo até a porta 72, e deve ser morto imediatamente." "Ele vem para cá", disse laconicamente Briggs. "E com isso, temos mais uma prova de que o que está atrás desta porta é bastante valioso", falou Myers, mais para si mesmo do que para Briggs. Os dois se puseram em posição de batalha, e então esperaram o invasor chegar. Deviam matá-lo, e, depois deste pico de excitação, voltar à vida monótona de antes da invasão. Porém, não foi o que aconteceu, pois o invasor não era ninguém menos que Kyle Katarn, espião da Aliança Rebelde e excelente guerreiro. Quando ele apareceu no corredor que Myers e Briggs guardavam, os dois rapidamente abriram fogo contra ele. Contudo, isto foi em vão, pois rapidamente ele se esquivou e matou os dois, que morreram defendendo uma porta que nem ao menos sabiam o que escondia.