quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Expedição Andina - A Partida

Pois é, caros amigos, chegou a hora de me despedir. Dentro de 9 horas, parto para Assunção, no Paraguai, onde minha viagem realmente começará. Acredito que será impossível postar qualquer coisa durante a jornada, mas não pensem que este é o fim. Espero estar de volta pelo final de fevereiro, e ter muito o que dizer por aqui.

Até então, me despeço. E caso vocês não consigam ficar sem ler algo durante este verão, recomendo o fantástico webcomic Girl Genius. Realmente vale a leitura.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sombras e Médicos

Acabo de assistir mais um episódio do fantástico seriado americano House MD, mais conhecida como "aquela do médico escroto que sempre acerta o diagnóstico". Já assisto este seriado há bons três anos, mas nunca antes na história deste país eu senti vontade de fazer uma análise psicológica a respeito de nenhuma das histórias. Contudo, o episódio de hoje, intitulado "Wilson", foi tão bom que seria um desrespeito à equipe da série não fazer uma desta vez.

Como todos que não moram de baixo de uma pedra sabem, House MD acompanha a vida do genial dr. Gregory House, gênio da Medicina, mestre em diagnósticos, agudo observador do comportamento humano e praticamente psicopata, que, junto de sua equipe, resolve os casos mais absurdos que os consultores científicos do programa conseguem descobrir. No começo do programa, os episódios giravam em torno das doenças, e do processo médico de descobrir o que está matando o paciente e como curá-lo. Porém, com o passar do tempo, os casos, apesar de continuarem bizarros e envolventes, tornaram-se secundários ao desenvolvimento da vida pessoal de House, sua equipe e os outros personagens relevantes, sendo muitas vezes usados como alavancas para fazer esta história ir adiante e os personagens se desenvolverem. Foi o que aconteceu no capítulo que assisti hoje, mas de uma maneira muito peculiar.

Geralmente, os episódios são "mostrados" do ponto de vista de House, e acompanham o desenrolar de seus casos, e como as relações pessoais do programa se desenvolvem. Em cada um destes episódios, temos dezenas, senão centenas, de exemplos tanto da genialidade do personagem principal quanto de seu comportamento sociopático (que, por incrível que pareça, é na maioria das vezes hilário), e, menos freqüente porém igualmente importante, vemos como estas duas coisas estão intimamente relacionadas. Hoje, entretanto, a história toda foi mostrada do ponto de vista de James Wilson, médico chefe do Departamento de Oncologia e melhor, se não único, amigo de House.

A relação deles é, na minha opinião, o aspecto mais intrigante do show, pois com alguma facilidade te faz pensar "como justamente ELES DOIS serem melhores amigos?". House, como já disse antes, é um sociopata genial. Por um lado, estes dois termos parecem se anular, mas, dependendo do ângulo em que são encarados, podemos ver que se reforçam um ao outro. Sociopatia, também conhecida como Psicopatia ou Transtorno de Personalidade Antissocial, é uma síndrome psiquiátrica que consiste em um padrão constante e global de falta de empatia, egoísmo, manipulação, mentiras e conflito com a lei e outras pessoas, e olha que eu resumi bastante. Em outras palavras, um psicopata é o tipo de pessoa que você não quer por perto, por que ele em algum momento vai te usar em benefício próprio. Wilson, por sua vez, é o exato oposto: gentil, atencioso, prestativo e dedicado à sua profissão, ele sempre se esforça ao máximo para conseguir que seus pacientes sintam-se em paz, tanto física quanto psicológicamente, mesmo que isto signifique sacrificar a si mesmo para isto (por favor, gravem esta última frase na memória - ela é importante para esta análise). Em suma, um é o oposto do outro. House é egoísta, Wilson é altruísta; House é sarcástico e ácido com todos, Wilson é gentil e delicado; House rouba a lanchonete, por que sabe que Wilson pagará sua conta. Em outras palavras, estes dois personagens têm tudo para se odiarem da maneira mais visceral possível - como eles são melhores amigos? Bem, vou tentar dar a minha resposta, baseado na inspiração que o capítulo de hoje me deu. Este começa com ele indo caçar com Tucker, um ex-paciente que se tornou seu amigo após ter sua leucemia curada pelo bom oncologista. Obviamente (para quem acompanha a série), Tucker tem um treco piripaque nó nas tripa passa extremamente mal durante esta caçada e volta para o hospital onde fora curado 5 anos atrás. E enquanto sua doença progride, vemos como Wilson cuida dele, bem como a outros pacientes ali internados.

Isto é muito interessante, pois pela primeira vez em seis temporadas, ao invés de acompanharmos House conjurar geniais hipóteses diagnósticas de seu rabo para os casos mais absurdos enquanto insulta todos os seres humanos capazes de ouvi-lo num raio de 100m, tivemos a rara oportunidade de ver Wilson atendendo os seus pacientes. Ao contrário de House, que vive num constante fluxo de adrenalina induzido pelas mais surpreendentes reviravoltas, Wilson tem uma rotina muito mais calma e estável (e este contraste foi brilhantemente abordado neste episódio, com as rápidas e estrambóticas* aparições da equipe de House, vista trabalhando por alguém de fora). Não quero dizer com isto que o seu trabalho seja mais fácil, apenas que a dificuldade dele não reside nas rápidas mudanças, e sim na dolorosa constância. Não sei muita coisa a respeito de Oncologia, mas imagino que este é um retrato bastante acurado da realidade. E nesta rotina, descobrimos que Wilson também é um excelente médico, pois vemos que ele, apesar de não ser tão afiado quanto House, também é capaz de detectar mudanças importantes na condição de seus pacientes baseado em sinais muito sutis, o que poucos outros profissionais da saúde seriam capazes de fazer (eu poderia atribuir isso à sua convivência com House, mas não quero tirar seu mérito). Também testemunhamos sua "ética de trabalho" em ação, na maneira como ele se relaciona com seus pacientes, com seus colegas e com seus amigos, e como sua maior preocupação é sempre o bem-estar de todos.

Apesar deste seu traço de personalidade já ser velho conhecido da audiência, ele é se torna muito importante para a trama que hoje se desenvolve. Conforme o episódio avança, e a doença de Tucker piora, deixando-o a beira da morte, até que descobrimos que sua leucemia voltara ainda mais forte (e fazendo com que Wilson perdesse 100 dólares numa aposta contra House, que deu este diagnóstico nos primeiros cinco minutos do episódio**). Numa manobra médica bastante ousada, Wilson sugere à Tucker uma nova quimioterapia. Os riscos envolvidos são altos, mas Tucker concorda. O câncer é extirpado, mas o fígado dele também, o que o coloca na lista de espera para doação de órgãos. Neste processo, Tucker percebe que fora um erro abandonar sua família para "viver uma vida de aventuras" e ficar com uma mulher 20 anos mais nova, e reaproxima-se de sua ex-esposa e filha. Como no fim nenhum doador adequado é encontrado, Tucker pressiona Wilson para que ELE doe um pedaço do seu fígado, já que cinco anos antes, Wilson doara seu próprio sangue para Tucker em uma transfusão, dizendo que ele aceitara a nova quimioterapia só por que era Wilson quem a propôs. Wilson, depois de se debater se deveria fazer isso ou não, acaba concordando, um pouco por culpa, mas principalmente por que não queria deixar que a família reunificada se quebrasse novamente. A operação é realizada com estrondoso sucesso, Tucker é curado e Wilson não enfrenta nenhuma seqüela. Porém, quando tudo termina, Tucker abandona sua família mais uma vez para ficar com a namorada, deixando Wilson com a impressão de que fora tudo em vão. House, por sua vez, enquanto não está ocupado fazendo algum malabarismo profissional (como mentir que seu paciente está sangrando pelos olhos para ter prioridade na sala de cirurgia), passa o resto do episódio sendo ele mesmo, parasitando Wilson, ocupando espaço na geladeira e dizendo com todas as letras para seu amigo que não desse parte de seu fígado para um "imbecil auto-centrado" como Tucker.

O que esse episódio tem de especial que me deixou com tanta vontade de escrever uma análise psicológica? Para começo de conversa, ele contrasta, de uma maneira nunca antes feita, a personalidade de House e Wilson. Creio que esta diferença fica mais clara se utilizamos os termos criados Carl Gustav Jung, discípulo renegado de Freud e criador da Psicologia Analítica. Para Jung, a Psiquê humana possui dois pares de funções opostas: Intuição e Sensação, Pensamento e Sentimento.  As duas primeiras são irracionais, por serem duas vias pelas quais "percebemos" o mundo ao nosso redor, enquanto que as duas últimas são racionais, por estarem envolvidas nos processos de tomada de decisão, que depende de nossas capacidades verbais. Todos nós possuímos todas estas funções, porém, geralmente utilizamos apenas uma de forma consciente. Ela é chamada de "função dominante", por ser a mais desenvolvida, e seu funcionamento é auxiliado pela segunda mais desenvolvida, chamada (muito apropriadamente) de "função auxiliar", e se a função dominante for racional, a auxiliar será irracional. Para entender como as funções trabalham, pensem que elas são sistemas operacionais - a Intuição é o Linux, a Sensação é o Windows, o Pensamento é o Mac OS e o Sentimento o MS-DOS. Cada sistema tem seu ponto forte e seu ponto fraco, e é melhor para cumprir algumas tarefas do que os demais. No mundo real, podemos usar apenas um sistema operacional de cada vez em nossos computadores. Todavia, no computador que é nossa psiquê, temos todos estes programas instalados e funcionando em diferentes níveis: o sistema dominante é o que aparece na tela e é quem "manda", mas ele não trabalha sozinho, por que o sistema auxiliar está logo ali atrás dele, checando suas decisões a partir de um ponto de vista diferenciado. As outras duas funções continuam ali, só que são basicamente inconscientes, e só aparecem "na tela do PC" quando as duas principais "dão pau", como a infame "Tela Azul", sendo que a última função em nível de desenvolvimento foi definida por alguns teóricos como sendo nossa "Sombra", que explicarei melhor o que é mais adiante.

Como disse, cada função tem um jeito de agir e uma especialidade. A Sensação percebe o mundo através de seus sentidos físicos, e foca-se no mundo físico e no momento presente. Já a Intuição capta o mundo através de esquemas mais abstratos, que possibilitam fazer associações entre dados e informações aparentemente desconexas, e foca-se muito mais nas possibilidades futuras do que no aqui-e-agora. O Pensamento toma decisões baseado na lógica e pensa no todo, enquanto o Sentimento foca-se nas emoções, preocupando-se mais com questões específicas. Além destas funções, também temos que considerar a direção que damos para nossas energias psíquicas: se focamos nossa energia no mundo exterior, somos extrovertidos; se nos preocupamos mais com o mundo interior, somos introvertidos. Agora que já expomos toda a informação necessária, podemos continuar.

Como já disse, House e Wilson possuem personalidades opostas. Baseado em sua longa carreira de brilhantes deduções e curas milagrosas, sua teoria altamente elaborada e pessimista sobre a natureza humana, e de sua abordagem estritamente lógica para o mundo, podemos dizer com muita segurança que as funções mais bem desenvolvidas de House são a Intuição e o Pensamento. Não podemos, porém, dizer com tanta certeza qual delas é a dominante e qual é a auxiliar. Eu diria, pela sua postura ativa e sua posição como chefe de um departamento médico encarregado de muitas decisões difíceis e rápidas, que, além de ser extrovertido, o Pensamento é sua função dominante. Wilson, por sua vez, também é extrovertido e chefe de departamento, mas sempre leva em consideração os aspectos únicos de cada paciente, que ele sente de forma muito profunda, o que me faz concluir que ele tem como função dominante o Sentimento e auxiliar a Sensação. Acredito que o que cria tamanha afinidade entre os dois personagens é esta oposição que um faz ao outro - não por que "os opostos se atraem", e sim pela relação dos dois er o que Jung chamaria de "arquetípica". Como disse alguns parágrafos acima, a nossa função menos desenvolvida é a Sombra de nós mesmos. Para Jung, a Sombra é um dos quatro arquétipos principais que compõe nossa personalidade, que acumula todas as características opostas ao nosso Ego Consciente. Se acreditamos que somos bondosos, nossa Sombra é maldosa; se pensamos que somos vermes desprezíveis, nossa Sombra é um deus; se pensamos que somos tímidos, nossa Sombra não é. Poderíamos dizer, em outras palavras, que a Sombra contém todas as nossas potencialidades não desenvolvidas, tanto para o bem, quanto para o mal. E é isto que House e Wilson são - Sombras um do outro.

Depois dessa pequena teorização, é possível que alguém pergunte "OK, eles são a Sombra um do outro, mas o que impede que eles simplesmente deixem de ser amigos?" É uma pergunta bastante razoável. Segundo a teoria de Jung, nascemos com um determinado temperamento, e que com ele nos orientamos pelo mundo. Porém, segundo esta mesma teoria, não devemos morrer com o mesmo jeito de ver as coisas, porque dentro de nós existe o impulso para a Individuação. Jung falou bastante a respeito da Individuação e como ela se dá, e não tenho o conhecimento nem o tempo necessários para explicá-la aqui de forma completa. Por isso, me limitarei a dizer que a Individuação é o processo através do qual os seres humanos se desenvolvem e tornam-se plenos, perfeitos até. Como vocês podem imaginar, ninguém nunca chegou a ser "100% individuado", por que a psiquê está sempre se modificando, e sempre há algo em nós mesmos que pode melhorar. Porém, a principal característica da Individuação é sua função transcendente, que nos leva a desenvolver as nossas funções que estão "na sombra". House desperta em Wilson seu lado menos submisso e mais assertivo, enquanto que Wilson lembra House de seu lado mais compassivo. Ambos negariam isto, mas ambos precisam desta lembrança constante do que eles podem vir a ser. 

Uma última consideração psicológica relevante destes dois personagens vem de uma teoria mais recente, e mais cientificamente embasada: a Terapia do Esquema. De acordo com ela, nossa visão de mundo se dá através de nossos esquemas cognitivos, que são criados e refinados ao longo dos anos, e a maneira como enxergamos o mundo depende largamente da qualidade de nossas experiências. O criador deste modelo, Jeffrey Young, identificou 18 Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs), isto é, esquemas que predispõe seus portadores à sofrimento psíquico. Curiosamente, um destes esquemas é o Autossacrifício***, que é muito comum entre profissionais da área da saúde. Ele é relativamente bem visto em nossa sociedade, e talvez não se considerasse um esquema desadaptativo, se ele não levasse as pessoas a descuidarem de si mesmas e voltarem todas as suas forças para os outros, machucando-se no final. Acredito que tanto Wilson quanto House possuem este esquema, mas desenvolveram estratégias de enfrentamento (isto é, como encarar os sentimentos, pensamentos e memórias trazidas à tona por ele) diferentes. A Terapia do Esquema propõe três estratégias de enfrentamento diferentes: rendição, evitação e hipercompensação. Wilson adota primariamente a primeira estratégia, rendendo-se à sua crença de ser necessário sacrificar-se pelos demais, e age de forma cuidadora e atenta o tempo todo. House, por outro lado, é um hipercompensador, e na maior parte do tempo se comporta como um cretino narcisista. Porém, é comum em situações estressantes estas estratégias mudarem, e quando Wilson chega a seu limite e House vê que seu paciente ou alguém que lhe importa está sob risco, as coisas se invertem. Também é importante notar que sabemos mais do passado de House, e podemos inferir outros esquemas resultantes de seu relacionamento com os pais, como Desconfiança/Abuso e Privação Emocional, além de Isolamento Social/Alienação por causa de sua genialidade.








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* Um dos pacientes dele fora internado por que comeu pipoca demais. Sério.
** Wilson é bom, mas House é sempre melhor.
*** Jung criou o conceito de "complexo", que, apesar de mais complexo, é muito similar aos esquemas cognitivos. E, levando esta semelhança em consideração, poderíamos dizer que um outro nome adequado para o esquema de Autossacrifício na teoria junguiana poderia ser "Complexo do Curador Ferido".

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Primeiro Post de 2010

É isso aí - 2010 chegou no Espadachim Cego também! Este seria o post perfeito para falar dos meus sonhos e aspirações para o novo ano, fazer promessas e manifestar esperanças. Isto é, se eu fosse um blogueiro convencional. Como não sou (e se fosse, provavelmente eu não seria capaz de escrever duas frases seguidas de maneira coerente sem escrever "miguxxxu" no meio delas), vou só publicar isso aqui para fazer volume no número de posts do blog.

Em todo caso, janeiro e fevereiro serão meses que, garanto, terão baixo número de atualizações, pois estarei viajando pela América do Sul. Passarei a maior parte do tempo na Bolívia e no Peru, mas também passarei pelo Paraguai e até mesmo pelo Uruguai, o que significa que, se as exigências acadêmicas não sugarem todo o meu sangue, eu provavelmente terei muito o que escrever pelo resto do ano, não só sobre a Expedição Andina, como também sobre a Expedição Austral (não, não me esqueci, nem abandonei meus ambiciosos planos de escrever praticamente um livro a respeito daquela jornada).

Assim sendo, fiquem em paz, caros (e poucos) leitores. Aproveitem o verão que se avizinha, vão para a praia, pulem o carnaval, ou o que quer que agrade a vossa senhoria. Por que ler textos novos por aqui, só no fim das minhas férias.