terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana (Parte IV)

Sim, da mesma forma que Forrest Gump fez quando estava prestes a ter a cara amassada pelos valentões do bairro, corri, corri, corri, com a diferença que por causa disso ninguém iria me colocar como quarterback de time de futebol americano nenhum. Porém, consegui chegar na boléia do caminhão e me trancar ali dentro. Não teria muito tempo antes de Tijolão começar a arrebentar os vidros a pazadas, então coloquei-me a trabalhar em uma solução para minha situação assim que pude. Olhei ao meu redor. As latinhas de cerveja ainda estavam lá, bem como os talheres e o taco de basebol. O taco de basebol, é claro! Chekhov provavelmente deve ter rolado em seu túmulo no mesmo momento em que eu percebi que este item desportivo poderia me ser útil naquela perigosa situação. Continuava fraco demais para enfrentar meu oponente de igual para igual, mas aquele taco seria de grande ajuda, por que, além de longo, ele era feito de alumínio, e bastante pesado.

Abafados e distantes, ouvi os gritos de Tijolão se aproximarem com uma rapidez demoníaca, e quando percebi, ele arrebentara o vidro do lado do motorista. Esta era a minha deixa. Aproveitando-me do fato daquele caminhão ter uma janela a menos, peguei o taco de basebol e acertei em cheio uma estocada na testa de Tijolão. O que, para meu horror, não serviu para nada, além de deixá-lo ainda mais furioso. Sentindo a morte se aproximando, desesperei-me e gritei: "Tu acaba de falhar no primeiro teste, Pedro Tijolão! O Coronel vai ficar muito desapontado quando eu lhe disser o que aconteceu aqui esta noite". Para meu espanto, ele parou e olhou para mim, com uma expressão confusa no rosto. "Quer dizer que tu conhece o... o Coronel?". Oh meu bom Deus, obrigado por um dos delírios dele ser a respeito de um Coronel! Agarrei-me à esta oportunidade de salvar-me como um náufrago se agarraria à uma tábua de madeira e continuei desfiando abobrinha em cima de abobrinha.

- Sim, conheço o Coronel, por que eu sou enviado direto dele. Eu vim testar a tua fé, e tu falhou, Pedro, falhou miseravelmente.
- Desculpa, patrão, desculpa! Mas como é que eu ia saber que tu não era um comunista? Até o telefone tu usou!
- Mas era essa a idéia, Pedro! Esse teste serviria para ver se tu era digno de levar adiante o plano, e agora não me resta outra escolha se não procurar alguém que seja.
- Por favor, patrão! Me dá outra chance, eu sei que eu posso!
- Não, não, não! Tu já teve a tua chance, e tu jogou ela fora. O Coronel foi bem claro quanto a isto!
- Por favor! Eu te peço de joelhos!

Claro que eu ia dar mais uma "chance" para ele! Mas, como em qualquer barganha, eu precisava bancar o difícil, e inventar uma nova prova de fé, que servisse o triplo propósito de acalmar os ânimos de Tijolão, impedir ele de chegar em Florianópolis e me deixar em casa. Quando pensei em "casa", lembrei que tinha perdido minhas chaves, e que precisaria arrombar a porta ou chamar um chaveiro, o que fosse mais conveniente. Como este pensamento não tem nada a ver com o que está acontecendo agora, me desconcentrei e disse:

- A chave! Há uma chave para tua salvação, Pedro! Uma só! E ela reside em uma simples tarefa. Mas antes de te dizer o que ela é, vou ter que consultar o Coronel. Vem comigo.

Desci do caminhão e caminhei em direção ao posto de gasolina da maneira mais digna e aristocrática que um homem que acabara de defecar nas próprias calças poderia. Fui até o balcão da lanchonete e pedi "o telefone, por favor". Esse "por favor" foi dito mais por hábito do que por desejo de ser educado, afinal de contas, por que eu tinha que ser educado se eu tinha um psicótico armado com uma pá me seguindo como um guarda-costas? A assustada garçonete não pensou duas vezes, e logo me trouxe um sem-fio. Tijolão, que acompanhava todos os meus movimentos com seus olhos esbugalhados e abraçando a sua pá como uma criança que abraça seu ursinho, parecia ansioso por alguma palavra minha, e para saber o que o Coronel teria a dizer para mim. A fim de aumentar a tensão dramática, e impedir que ele ouvisse a minha conversa com meu "chefe", disse "espera lá perto do caminhão. Tu vai saber o que fazer quando eu achar que tu deve saber". Papo para boi dormir, mas ele obedeceu.

Assim que ele saiu da lanchonete e não podia mais me ver, abandonei o ar pomposo e voltei a me comportar como um rato acuado, agarrando-me com toda a minha força ao telefone, e dizendo com a maior rapidez possível quando o outro lado atendeu:

- Borat, tô na merda!
- Que?!

Para meu azar, era a mãe dele.

- Quero dizer... o Lucas se encontra?
- Não, ele acabou de sair. Quer deixar recado?
- Ele levou o celular dele? Me diz por favor que ele levou o celular...
- Não, tá aqui em cima da mesa o celular dele.
- Ai...
- Não quer deixar recado mesmo?
- Não... quero dizer, sim! Pensando bem, tia, me faz um favor?

Acho que ela não gostou muito de ser chamada de "tia", pois respondeu com a maior das más vontades:

- O quê tu quer?
- Bom dona, tem como tu olhar a agenda do telefone dele e procurar uns telefones?
- Por que eu faria isso? Olha, liga mais tarde e fala com o Lucas.

Desesperado com a possibilidade dela desligar o telefone, dei minha última cartada:

- Não desliga, por favor! Olha só, é caso de vida ou morte, e isso não é metafórico! Por favor, por favor, por favor, OLHA O CELULAR DELE POR MIM! Se fosse o teu filho ligando para a minha mãe, tu não ia querer que ela fizesse isso por ele?

Sensibilizada pelo meu medo e seu instinto materno, ela se dispôs a fazer isto, e me passou o contato de todas as pessoas que eu conhecia e que Borat tinha um número, e de algumas que nunca vi mais gordas. Depois de agradecer profusa e efusivamente pela ajuda que me dera, desliguei e imediatamente liguei para uma amiga:

- Alô? Cháris, me salva!
- Andarilho, é tu? Onde tu tá? Uma hora tu estava com a gente na festa, e na outra, tu sumiu! O Borat nos contou que tu tá em Uruguaiana, isso é verdade?
- Não tô mais. Consegui carona e viajei uns 50km, e devo estar mais pros lados de Alegrete agora. Não tomo banho à 4 dias, tô coberto de bosta, tô fedendo, meu caroneiro é um psicótico em surto e acabou de tentar me matar com uma pá!
- Como assim?!
- É isso aí. Quando eu disse "Cháris, me salva" não foi por força de expressão!
- Mas o que tu quer que eu faça?
- Rouba um carro e vem me buscar. Sei lá. Só arranja um jeito de me buscar! Fala com o Borat que tem carro, e diz pra ele que eu tô num posto de gasolina pra depois de Alegrete, e que um pirado pode me matar. Depois que ele se matar de rir da minha cara, ele vai vir me buscar. Ah! E diz pra ele que eu vou chamar ele de "Coronel".
- Tá...
- Ah, e diz pra ele cobrir os bancos do carro com algum plástico para eu sentar e não estragar o estofamento.
- Tá...
- E que eu não vou ficar triste se ele trouxer uma arma junto.

Ao desligar o telefone, sentia-me tão alegre, tranquilo e leve quanto Homer Simpson se sentiria na Terra das Rosquinhas. Claro que essa minha alegria não durou muito, pois logo lembrei que precisava ir falar com o meu maluco favorito e inventar alguma tarefa redentora que o deixasse ocupado por pelo menos 8 horas, tempo que imaginava ser suficiente para Borat pegar o carro e vir me buscar. Dependendo de como Tijolão reagisse, tudo ficaria mais fácil ou mais difícil. Preciso dizer qual alternativa vai ser?

Continua...

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana (Parte III)

Os ideais, não importa quão belos sejam, têm sua validade sempre dependente do contexto. Por exemplo, a Reforma Psiquiátrica, que busca pôr abaixo os manicômios, hospícios e preconceitos e possibilitar uma vida mais livre e digna para pacientes portadores de sofrimento psíquico parece muito mais bonita quando não se está dentro de um veículo de grande porte dirigido por um esquizofrênico em surto. Bem, esta era a situação em que me encontrava, pois aquele caminhoneiro que parou para me dar carona, que a princípio parecia um lunático na verdade estava completamente delirante, me fazendo rezar por um hospício bem psiquiatrizante e com uma máquina de eletrochoque bem potente.

Ele dizia que seu "nome de cartório" era Pedro, mas que todos o chamavam de Tijolão. "Por que?" perguntei em um rompante infeliz de curiosidade, que o estimulou a contar uma história confusa e desligada da realidade, que envolvia de uma maneira muito bizarra a Brigada Militar, "os espião do Jorge Bush", alienígenas estupradores, rádios à pilha que controlam pensamentos e a olaria do pai dele, que tinha sido construída sobre a o tesouro dos Farroupilhas. Também envolvia, bastante tangencialmente diga-se de passagem, um golpe de tijolo que ele levou na cabeça quando guri. Em um setting terapêutico em Porto Alegre, seguro, confortável e cheirando à Bom Ar, eu acharia tal depoimento profundamente interessante, e mais fantástico que o caso do Presidente Schreber, mas ali, na boléia de um caminhão dirigido por este cidadão que deveria estar tomando Haldol como quem come Tic-Tacs, só serviu para aumentar meu pavor. Porém, eu já tinha começado a escarafunchar e ver as coisas com mais clareza, e não podia parar por ali. Restavam, pelo menos, mais duas perguntas por fazer: o que ele estava levando de carga e o porquê. Eu ia me arrepender de saber essas coisas, e ia ficar ainda mais apavorado, mas não dava para segurar:

- Seu Tijolão?
- Fala, guri.
- O que o senhor está levando na carga?
- Ali atrás?
- É. Ali atrás.
- Vacas.
- Como é que eu não ouvi nenhum mugido até agora?
- São vacas ninja. Tipo o Jiraya. Essas são muito rara. Tive que buscar elas lá na Argentina.

Estas informações reativaram meu olfato, até então anestesiado pelo meu próprio fedor, e passei a sentir um forte cheiro de carniça, e me impressionei por não tê-lo sentido antes. Pelo menos eu entendi como ele não se impressionou com o meu fedor. Ainda assim, continuava cheio de dúvidas (principalmente sobre onde ele aprendeu sobre Jiraya) e continuei:

- E o que o senhor pretende fazer com elas?
- Me vingar dos vermelhos, aqueles fiodaputa.
- Com um exército de vacas ninja?
- É isso aí. Por que?
- É um plano de gênio, seu Tijolão. Mas onde estão estes comunistas?
- Eles se escondem lá em Floripa, no Mercado Público.
- E o senhor vai soltar suas vacas lá, é isso?
- E pegar todos aqueles cornos.

Não me entendam mal - eu, mais do que qualquer outra pessoa, sou capaz de perceber o lado humorístico de um psicótico largando vacas mortas no meio de um mercado cheio de gente (e que, se ele fosse um estudante de Psicologia, ele estaria fazendo uma intervenção) e de todas os noticiários babacas que surgiriam na internet, mas precisava impedi-lo de fazer isto. Afinal de contas, quem pode imaginar quantas novas "doenças da vaca louca" (ou do "louco das vacas") podem surgir com essa brincadeira?

Precisava impedi-lo, já disse, mas não sabia como. Sabia que o papo furado de "confrontação empática" não iria colar ali, e que, se rolasse confrontação, ela seria bastante "antipática", por assim dizer. Comecei a olhar ao redor da boléia para ver se encontrava qualquer coisa que poderia ser como arma, especialmente contra mim. Além das dúzias de latinhas de cerveja que poderiam ser atiradas contra minha cabeça, identifiquei uma pá e um taco de basebol, além de um jogo de talheres completo. Por que este cidadão estava levando um jogo de talheres completo em sua boléia, não quero nem pensar - deveriam ser shurikens de vaca. Subitamente, surgiu em minha cabeça um ousado plano. Era absolutamente delirante, mas considerando que meu caroneiro também era, talvez funcionasse. "Seu Tijolão", disse com a voz baixa, "seu plano é genial, mas tem um problema". Ele levantou suas sobrancelhas e olhou para mim com interesse e espanto. Era o sinal de que tinha capturado sua atenção. Antes que ele perguntasse qualquer coisa, continuei - "suas vacas não estão bem treinadas". "Mas como, tchê? Eu mesmo peguei elas no campo e vi que elas eram boas!" exclamou ele. O olhar dele me pareceu um pouco assassino demais, então tão rápido quanto pude, emendei uma desculpa:

- Sim, elas tem muito potencial e só alguém muito bom poderia selecionar vacas ninja tão poderosas, mas precisam um treino especial a mais.
- E que treino é esse?

Olhei para os lados, como se procurando algum espião, e respondi:

- Não posso dizer agora. Os vermelhos podem nos ouvir. Eles controlam tudo nessa estrada, mas estamos com sorte. No próximo posto de gasolina há um mestre vaca ninja aliado nosso, e que pode dar o treinamento final para seus soldados.
- Tem certeza?
- Absoluta! Mas vamos com cuidado. Os espiões do Stalin estão por todos os lados, mesmo lá no posto.

Eu já sabia que tinha talento para ganhar a simpatia de psicopatas, mas este meu talento para conquistar a confiança de psicóticos era algo novo para mim. Bom, pelo menos estava progredindo: tinha conseguido carona para a Capital, e iria parar em um posto de gasolina, onde provavelmente eu encontraria um orelhão e talvez um chuveiro, e poderia conseguir uns trocados para um telefonema e uma ducha fria, até mesmo um Prato Feito ou qualquer angu de posto de gasolina. Depois de informado, limpo e alimentado, eu pensaria em como continuar a história do treino das vacas ninja e impedir meu amigo Tijolão de fazer alguma merda em Florianópolis.

Depois de cansativos trinta minutos (por que ficar fingindo estar se escondendo de possíveis espiões cansa pra cacete), chegamos no posto. Era igual a quase todos os outros postos de gasolina de beira de estrada que já conheci. Não era nada de especial, mas naquele momento parecia especialmente paradisíaco. Faziam quatro dias que tinha sumido de maneira pecaminosa de Porto Alegre, já estava anoitecendo e eu continuava coberto de sujeira. Tudo conspirava para que meus pais estivessem surtados me procurando em todos os cantos errados da capital e da Serra e que não me encontrariam, o que os deixaria ainda mais surtados. Dadas estas circunstâncias, me senti liberto de qualquer pudor e decidi satisfazer minhas necessidades de qualquer maneira. Antes que vocês digam que eu decidi vender meu corpo por uma coxinha de galinha e uma Sukita, matando dois coelhos com uma cajadada só, já lhes informo que na verdade eu não cobro comecei a mendigar trocados e/ou cartões telefônicos. De certa forma, era mais ou menos como passar por um novo trote, com a diferença que dessa vez, não pedia trocados para beber demais, mas pedia trocados por beber demais.

Não sei o que as pessoas que eu abordava pensavam quando me viam, mas sei que recebi muitas doações. Talvez eles não quisessem que eu encostasse no carro deles, o que poderia vir a ser uma boa ameaça caso precisasse ser mais "convincente". Tendo acumulado muitos sucessos na minha carreira mendicante, pensei em descansar um pouco e tomar um banho. Porém, o senso de urgência que tomara meu corpo (além das minhas pulsões sado-masoquistas/auto-punitivas) era forte demais para permitir tamanho luxo antes de eu telefonar para alguém conhecido e confiável. Por isso, assim que achei que tinha créditos o suficiente para dizer, por telefone, onde e como eu estava, fui até o orelhão mais próximo e liguei para o Borat.

Tuuuuu... Tuuuuu... Tuuuuu... A ligação tinha sido feita. Enquanto esperava alguém atender, ensaiava novamente o que diria, especialmente se alguém além do Borat atendesse o telefone (e agradecia pelo fato de tal aparelho não transmitir odores). Tuuuuu... Tuuuuuu... Tuuuuu... Mais alguns segundo de espera, antes de contatar minha salvação. Tuuuuu... Tuuuuu... Tuuuuu... Já demorava demais, e começava a pensar se meu redentor não teria saído para beber e no processo esquecido completamente da minha existência (e, se ele realmente fez isso, se foi intencional). O orelhão iria começar mais uma vez sua monótona canção quando escuto o barulho de um fone sendo tirado do gancho do outro lado da linha e escuto o primeiro alô do meu amigo. Mal começara a dizer "Borat, seguinte..." quando, por razões que a própria razão não compreende, senti um forte impulso de largar o telefone e rolar para a esquerda. Quando fiz isso, percebi que dizer que a razão não comprendia por que eu deveria fazer isto talvez fosse incorreto, pois meu caroneiro Tijolão tinha recém arrebentado aquele orelhão com uma pá, enquanto gritava "Comunista" e "traidor" a plenos pulmões.  Ao contemplar tal espetáculo, pensei que, se algum dia eu tivesse a oportunidade de dizer ao meu psicanalista como me senti naquele instante, diria que me senti como Kitti Genovese e um bebê de 6 meses, por que ninguém que estava ali por perto fez nada, e por que eu acabara de cagar nas calças com o susto.

"Telefone é coisa de comunista, seu porco! Me traiu!" gritou ele mais uma vez, desta vez olhando para mim com olhos injetados de sangue. Ele não era mais Tijolão, mas Azrael, o anjo da morte, e ele viera para a terra para levar minha alma para o inferno, não com uma foice, mas com uma pá. Talvez, em condições normais, eu pudesse enfrentá-lo de frente, sem medo, como um verdadeiro guerreiro. Contudo, os últimos quatro dias que passei cometendo todas as heresias listadas pelo Vaticano e buscando voltar para Porto Alegre deixaram-me completamente esgotado e incapaz de dar um soco sequer. Eu ainda conseguia correr. E como conseguia! O problema que Tijolão também corria muito para um homem de seu tipo físico, o que me obrigava a mudar minha estratégia, e logo. Em uma ousada e desesperada manobra, desviei-me de Tijolão, e corri com todas as minhas forças em direção ao seu caminhão.

Continua...

As Histórias da Expedição Austral - Nossas Idiossincrasias Lingüísticas

Apesar da linguagem ser um desenvolvimento evolutivo relativamente recente, é razoável dizer que o Homo sapiens é um animal verbal. Em outras palavras, isto quer dizer que o ser humano inventa palavra para tudo que é porcaria que ele conhece e/ou inventa. Para dar um exemplo disto, vamos imaginar que voltamos no tempo, e que agora somos Vikings, navegando em um navio com cabeça de dragão, procurando terras para pilhar e usando capacetes com chifres mesmo que os vikings de verdade nunca tenham feito isto. Agora, pensem que nosso navio atracou em uma praia desconhecida, porém muito bela do hemisfério sul. No melhor espírito aventureiro, nós descemos do navio e exploramos a terra, com a expectativa de enfrentar alguma horda bárbara e irmos para o Valhalla, quando, de repente, vemos diante dos nossos olhos uma linda, colorida e gigantesca ave, voando com graça e elegancia. O que fazemos? Matamos a ave, obviamente, por que nós somos Vikings e nós matamos coisas. Porém, depois que a matamos, vemos que ela é muito diferente de qualquer outro pássaro que conhecíamos. O que temos que fazer? Além de descobrir se dá pra comer a carne do bicho, precisamos inventar um nome para ele. Mas não se preocupe, estas duas coisas acontecerão naturalmente, e algum dos nossos companheiros criará uma palavra como "Arara", "Papagaio" ou "Parakittar" para designar a nossa futura janta.

Agora, voltemos para o tempo presente, por mais desinteressante que ele possa parecer agora por não sermos mais vikings e por não termos arara para o jantar. Este exemplo que eu dei, apesar de ser preciso o suficiente, não é amplo o bastante, por que não inventamos palavras só quando um troço colorido e cheio de penas voa em nossa direção, e sim o tempo todo. De fato, apesar de não poder provar nada do que vou afirmar agora (e, aliás, nem preciso, isso aqui não é um artigo pra Science), creio que passamos por um processo parecido quando aprendemos a falar nossa língua materna, e é através dessa "invenção contínua" de novas palavras que novas línguas nascem. Se os vikings do nosso exemplo, ao invés de voltarem para a Escandinávia, resolvessem estabelecer uma comunidade ali naquela terra cheia de Parakittars e não fossem todos devorados por criaturas selvagens e/ou populações auctóctones, dentro de algumas décadas desenvolveriam uma linguagem tão diferente da original que se transformaria em uma nova. Isso aconteceu pelo menos uma vez, com os holandeses que se mudaram para a África do Sul e "criaram" a língua afrikaans.

Mas não precisamos ir tão longe assim. É bem possível que exista algum agrupamento humano que, apesar de separado do resto de sua sociedade, não desenvolva uma língua própria, contudo esteja isolado o suficiente para criar toda uma vasta gama de termos novos para coisas que não existem no "resto do mundo" ou que lá teriam um outro nome, mais convencional. Um exemplo disto são as Forças Armadas que, por obrigarem seus membros a passarem quase todo seu tempo isolados do resto da sociedade, desenvolvendo tarefas pouco ortodoxas (pilotar helicópteros, por exemplo), muitas vezes acabam criando espontaneamente e ao longo do tempo uma forma muito própria de se comunicar. O melhor exemplo que tenho deste fenômeno é este longo e interessante glossário de termos utilizados informalmente pelos membros da Marinha dos Estados Unidos. É longo, porém extremamente divertido (eu me matei de rir com "Whistling Shitcan of Death" e PFM). É discutível se, durante nossa viagem, eu e Marcelo ficamos realmente isolados do resto da sociedade, mas como nos confrontamos com necessidades diferentes das nossas em Porto Alegre, acabamos por inventar palavras novas ou remodelar as antigas para que melhor descrevessem nossas condições (e também serem mais engraçadas).

A primeira gíria surgiu ainda em Buenos Aires. No primeiro ou segundo dia de congresso, eu e Marcelo caminhávamos apressadamente para chegarmos à tempo de alguma palestra e, como estávamos com fome, paramos em um mercadinho, onde compramos algumas unidades de pão francês, que provavelmente deveriam ter pó de cimento na mistura, por que eram horríveis - secos, duros e sem gosto algum. Como bom estóico que é, Marcelo simplesmente passou a dar mordidas mais fortes, eu, como bom palhaço e nerd, me lembrei de um pedaço de "O Hobbit", e o compartilhei com meu amigo  no seguinte diálogo:

Eu- Marcelo, tu já leu "o Hobbit"?
Marcelo- Duas vezes.
Eu- Tu te lembra do "cram"?
Marcelo- Não.
Eu- Cram era o nome de um pão de viagem dos anões, parecido com o Lembas, que era duro, seco e sem gosto, e que servia mais para exercitar as mandíbulas do que para a alimentação.
Marcelo- Ah!

E assim, daquele momento em diante, cram virou sinônimo de "comida ruim, mas que supre nossas necessidades". Mais adiante na viagem, já na Patagônia, cram passou a ser o nome muito particular que demos para os mandolates da La Anonima, que descobrimos em uma promoção de Natal. Como os pães de Buenos Aires, eles eram secos, duros e com um gosto muito sutil (para não dizer inexistente), mas serviam para encher a barriga entre as refeições. Muitas vezes, durante as nossas caminhadas, ouvi Marcelo dizer "pega o cram, por favor", como se ele dissesse "hora de manter a glicemia". Curiosamente, mais para o final da viagem, compramos mandolates da Arcor, que além de mais macios, tinham sabor de alguma coisa, e a primeira coisa que dissemos quando descobrimos isso foi "bah, que merda, isso aqui tem gosto. A gente vai acabar com tudo logo, logo". Feliz ou infelizmente, não foi o que aconteceu, pois os tais mandolates provaram ser enjoativos.

A segunda palavra que desenvolvemos foi PDM. Sempre que iríamos fazer alguma coisa peculiarmente arriscada ou idiota, calculávamos seu PDM. E o que é PDM? É "Potencial pra Dar Merda". E nossa viagem era cheia de potencial! Como exemplo clássico do uso deste termo, lembro-me de "tchê, essa tua idéia tem um alto PDM", quando um de nós sugeria qualquer coisa perigosa ou imbecil. Foram tantas que nem vale a pena fazer uma lista. Considero esta sigla especialmente engraçada por ter, ao mesmo tempo, um ar altamente técnico e um significado particularmente vulgar.

A terceira palavra não é tanto uma gíria nossa, e sim mais um hábito nosso. Como nós estávamos bastante acostumados a comparar preços, nós fazíamos isto em qualquer lugar onde houvesse prateleiras e produtos à venda, mesmo que não quiséssemos comprar nada. Por que fazíamos isso? Por despeito, pois assim, podíamos nos sentir melhores do que o resto das pessoas que compravam, por que sabíamos que os preços ali eram absurdos e nós sabíamos onde era mais barato (no La Anonima, é claro!). E o nome que dávamos para esta sobra de preço era "achacação". Se, durante uma viagem de ônibus parássemos em um posto de conveniência (assim chamados por dois motivos: 1. são bem localizados, para a conveniência do viajante; 2. têm os preços absurdamente inflacionados, para a conveniência do dono do estabelecimento), um de nós certamente olharia o preço das coisas à venda e diria para o outro "a achacação aqui é violenta" e tentaria pegar discretamente a comida que o casal de idosos deixou sobrando no prato.

Também tínhamos uma relação especial com as palavras do espanhol que aprendíamos no caminho. Não pedíamos carona, "haciamos dedo" - ou "fazer dedo", depois de muitas horas na beira da estrada. Jurel, caballa e pelón (além de choclo, por parte do Marcelo), apesar de provavelmente terem algum equivalente em português, eram os únicos termos que tínhamos à nossa disposição para descrever três itens bastante importantes de nossa empreitada - para ser sincero, até hoje não sei bem que tipo de peixe são caballa e jurel (porém pelón eu sei que em português é nectarina). Copado, apesar de não ter se tornado parte integrante do nosso vocabulário, era um acessório interessante, que usávamos quando conversávamos com argentinos e queríamos dar a entender, ao mesmo tempo, que achávamos que algo era legal, e que entendíamos do dialeto argentino. Como diriam os norte-americanos exceto os mexicanos worked like a charm.

Por fim, dois dedos de prosa a respeito do nosso equipamento. Não, não inventamos nomes personalizados para nenhum item do nosso inventário (exceto a garrafinha, que sempre chamamos de "A Saudosa"), mas fomos, com o tempo, descobrindo seus nomes em espanhol e utilizando-os quando necessário. Barraca é carpa ou tienda; fogareiro, calentador; guardanapo (sim, sempre tínhamos pelo menos dois à nossa disposição), servilleta. Por causa do hábito que nosso calentador tinha de apagar quando mais precisávamos dele, tivemos que desenvolver um dispositivo que protegesse sua chama e mantivesse seu calor. Foi assim que nasceu o "forno". Se vocês pensaram em um invento altamente sofisticado, eu sinceramente duvido que vocês tenham entendido como foi nossa viagem. Basicamente, nós colocávamos um de nossos isolantes térmicos em volta do fogareiro aceso, e o cobríamos com uma jaqueta. O fogo continuava apagando, mas com muito menos freqüência. E, last but not least, passamos a viagem inteira chamando nossa panela de "panela", para depois descobrirmos que era uma leiteira. O que não muda nada, pois continuo chamando ela de panela.

A "leiteira" em ação. Sim, a situação é algo que saiu de um livro dadaísta.