segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

As Histórias da Expedição Austral - Diários da Cozinha

Prometi, há muito tempo atrás, escrever um relato completo de minha viagem pela Patagônia, que em minha cabeça, seria tão grande quanto um livro: seria dividido em vários capítulos, um para cada fase da jornada, além de um que outro comentário psicológico ou antropológico que achasse interessante. Apesar de não ter ido além de um rascunho do segundo capítulo, nunca abandonei este plano. Por isso, graças ao tempo livre que surgiu com o fim do semestre, e uma nova viagem pairando no horizonte, decidi retomá-lo. Porém, como não estou com meu diário de viagem comigo, e não me encontro em estado de espírito favorável para narrativas, escreverei sobre um assunto que não pretendia originalmente, mas que está intimamente ligado à nossa peregrinação através do deserto patagônico: Nutrição. Provavelmente falarei a respeito disto em outros e futuros posts, sendo um pouco repetitivo, mas não vejo problema nisso, pois em nenhum outro lugar serei tão detalhista quanto aqui. Além do mais, a redundância tem seu charme.

O problema da comida preocupou a mim e Marcelo desde antes de colocarmos os pés no ônibus para Buenos Aires, e, conforme fomos progredindo e aprendendo com a experiência em nossa viagem, fomos nos adaptando, desenvolvendo novas estratégias e truques, além de algumas obsessões com a nossa alimentação. Ainda em Porto Alegre, nos encontramos na casa de uma tia dele, antiga viajante e tão fã de indiadas quanto nós, com dois objetivos. O primeiro era para testarmos a nossa recém adquirida (e ainda intacta) barraca, e aprendermos a cozinhar em circunstâncias adversas com nosso fogareiro. Não vou estragar a história e contar nada antes do seu devido tempo, mas quero neste ponto apenas dizer que, algumas semanas mais tarde, descobrimos que este treinamento fora bastante incompleto. Ah, como foi!

Em todo caso, naquele dia, cozinharíamos pela primeira vez a comida que imaginávamos que iríamos comer ao longo da Expedição. Assim sendo, preparamos uma refeição com os mesmos ingredientes e ferramentas que esperávamos usar na Argentina: nosso fogareiro, nossa panelinha, uma colher e nada de condimentos. O que saiu foi uma massa sem sal com atum. Tudo correra tranquilamente, e a comida foi suficiente tanto para mim, quanto para Marcelo, além de não ser tão ruim quanto eu imaginava. Por isso, saímos de lá com uma sensação de vitória, e de que, pelo menos no que dizia respeito à comida, não teríamos problema algum. Já em território estrangeiro, mas ainda na civilização, fizemos mais um treino, cozinhando outra massa, desta vez com tomate e uma lata de jardineira (logo mais falarei de todos os ingredientes que usamos ao longo da viagem em nossas refeições. Não eram tantos assim, acredite). Naquela ocasião, disse que eu perdera toda minha dignidade tentando abrir esta lata usando minha bota (não, não vou explicar como). Outra vez, achei erroneamente que este seria o ponto mais baixo que atingiria ao longo da Expedição.

Os problemas de fato só começaram em Puerto Madryn, primeira cidade patagônica que visitamos. Porém, estes problemas não eram relacionados à comida em si, mas sim a um dos equipamentos mais importantes: o fogareiro. Para quem não sabe, na Patagônia venta muito, e para quem sabe menos ainda, fogueiras e chamas fracas podem ser apagadas com lufadas de vento muito fortes. Para quem não conseguiu ligar os pontos, eu explico: nosso fogareiro tinha a chama fraca, e como ventava o tempo todo, não tinha como cozinhar em campo aberto. É, não tínhamos previsto este contratempo em Porto Alegre, o que apenas nos deixou mais abobalhados na hora que percebemos isto. Como somos indivíduos muito capazes e inteligentes, demos um jeito naquela hora. Porém, este problema continuou ao longo de toda a Expedição, e em todos os lugares que cozinhávamos com o fogareiro, éramos obrigados a inventar soluções novas, e cada vez mais bizarras. Como este não é o assunto deste post, e não quero ser por demais repetitivo, deixo ao cargo da imaginação de vocês quais soluções eram estas, até que chegue o momento de relatá-las neste mesmo blog.

Em todo caso, apesar de sermos novatos no ramo da mochilagem, sabíamos que passar fome é uma coisa ruim, e conhecíamos meios de evitar que isto acontecesse. Para ser justo, quem sabia mesmo esse tipo de coisa era o Marcelo, que lera algumas coisas sobre Nutrição antes de partirmos, e pedira algumas dicas para uma nutricionista, além de ser o cozinheiro efetivo da dupla (meses depois de nosso retorno, enquanto fazíamos uma jantinha lá em casa, Marcelo falou que minha maior habilidade culinária era lavar a louça com muita presteza. Lamento dizer que aquela bicha ele está corretíssimo). Por isso, apesar de contarmos com poucos recursos, tínhamos à nossa disposição um método eficaz de investi-los, que fazia com que comêssemos o máximo desperdiçando o mínimo (pelo menos assim acreditávamos). Este método é relativamente simples, e leva em conta dois grandes fatores: os nutrientes e o dinheiro. Quando íamos ao mercado, fazíamos um "cálculo subjetivo" (ugh, só um psicólogo pra largar uma dessas), cujas variáveis eram nossas necessidades nutricionais, a quantidade do produto e o preço. Se um dado produto contasse com mais nutrientes (segundo a Wikipédia, os principais são proteínas, carboidratos, gorduras e minerais - se bem que não éramos tão refinados a ponto de conhecermos a necessidade de ingerir minerais, ou pelo menos eu não lembro do Marcelo falar a respeito deles), maior peso líquido e menor preço, seria comprado. Claro, nem sempre encontrávamos um produto que suprisse tão perfeitamente nossas necessidades, e na maior parte das vezes, precisávamos escolher o produto "menos pior". Contudo, imagino que, para algum transeunte que passasse por nós dois, sentados no chão e olhando para várias latas diferentes, deveríamos parecer algum tipo de pegadinha do Faustão.

Os alimentos que comprávamos eram bastante simples e repetitivos, e como conseqüência disto, nossas refeições quentes também. Posso resumir tudo o que comíamos no almoço e no jantar em arroz, macarrão, peixe enlatado e latas de verduras e legumes em conserva, mais conhecidas como jardineiras. O modo de preparo era igualmente refinado: aquecer, misturar e comer. Esta fórmula de sucesso manteve-se inalterada por praticamente toda a viagem, salvo memoráveis exceções (que intencionalmente omitirei neste post), mas sofreu ligeiras modificações no que tange os ingredientes em si. No começo da viagem, era mais comum de nós fazermos macarrão - contudo, depois que percebemos que arroz rendia mais e enchia mais a barriga, meio que o deixamos de lado. Também fazíamos refeições mais ricas, que envolviam arroz, tomate, jardineira e atum, só que, de novo, largamos disso e passamos a usar só um acompanhamento de cada vez para nossa fonte de carboidrato (i.e. o arroz), alternando qual tipo de lata usávamos em cada refeição. Quando queríamos dar uma incrementada protéica no negócio, cozinhávamos um ovo no arroz. É isso mesmo: quebrávamos ele e deixávamos ele cozinhar por cima do arroz e, quando ele estava consistente o bastante, misturávamos tudo e engolíamos (em muitos momentos, "comer" tornou-se um verbo pouco acertado para nossa postura). Em certos dias, porém, lançávamos mão do recurso do "pão com qualquer coisa". Por exemplo, nos primeiros dias em Puerto Madryn, estávamos no centro da cidade, e compramos um pão do tamanho de uma cabeça humana e comemos com queijo, iogurte natural e cereais, e, dias mais tarde, no meio de um areal cheio de moscas monstruosas, comemos pão com jurel (e eu, um pouco de areia, por pura ogrice teimosia).

Com o dinheiro acabando e a fome continuando, fomos ficando menos seletivos quanto ao tipo de porcaria que comprávamos. Foi assim que deixamos de comprar atum enlatado, que é um peixe relativamente nobre (leia-se "caro"), e passamos a comprar outros peixes de segunda qualidade. Adotamos essa prática depois de percebermos que as latas de Jurel e Caballa, além de serem mais baratas, eram maiores e portanto continham mais comida. Sim, sim, elas também vinham com a coluna vertebral do peixe de brinde, mas isso é fato irrelevante. O que importava é que a gente comia mais, e tinha praticamente o mesmo gosto (dava gases, porém, segundo um Guilherme, um dos caras que conhecemos durante a viagem. Ele provou isto empiricamente - conosco por perto, no less). As jardineiras que comprávamos também sofreram modificações, todavia, não por vontade nossa, e sim por contingências econômicas. Basicamente, há dois tipos de jardineiras: com milho e sem milho. Por que só o milho caía fora da mistura e mais nada, eu não sei. Porém, sempre que tínhamos a escolha, comprávamos as que tinham milho, talvez por considerá-las mais nutritivas, por algum desejo reprimido de ver nossas fezes decoradas como escatológicas árvores de natal, ou simplesmente por que era mais gostoso. Uma curiosidade para vocês: quando eu e Marcelo discutíamos a questão de comprar jardineiras com ou sem milho (por que aquilo era Coisa Séria), ele sempre se referia ao milho como "choclo" (que é milho em argentino castelhano), enquanto que eu, por algum tipo de bairrismo, continuei falando "milho".

O café da manhã é um caso mais complexo, pois nele não seguíamos nenhuma fórmula bem estabelecida, exceto o da necessidade de comer pela manhã. Entre as coisas que comemos no desjejum que agora me vêm à memória, encontra-se uma lata gigantesca de abacaxi em calda (foi com ele que, pela primeira vez, percebemos quão ridículo era nosso "cálculo subjetivo"), frutas, bolinhos da Bauducco (que não eram da Bauducco), sucos de caixinha convenientemente coletados de um ônibus, pão com dulce de leche e, maravilha das maravilhas, leite de chocolate com granola. Neste dia, o Marcelo declarou sentir-se em casa, por ser o tipo de café que ele tomava em Porto Alegre, enquanto eu fiquei feliz simplesmente por que era quase como tomar Nescau - e não fora a primeira vez (uma viagem dessas mostra como somos simplórios).

As frutas constituem um caso interessante. Primeiro, por que eram difíceis de serem encontradas na Patagônia em boas condições e por um preço razoável. Quero dizer, conseguimos mais de uma vez encontrar frutas de boa qualidade, mas o preço geralmente era mais alto do que desejaríamos. No começo, buscávamos mais produtos tropicais ("eu sinto falta de banana" sendo uma frase que Marcelo disse algumas vezes e que eu posso ou não ter escrito aqui de maneira distorcida e descontextualizada só para fazer uma piada de duplo sentido). Com o tempo e a experiência, fomos procurando outros tipos. Nossa melhor descoberta foi o "pelón", um tipo de pêssego que não tem a casca aveludada e não é tão gosmento quanto. Segundo, por que elas servem como um interessante dispositivo literário, que me permite falar agora dos nossos "lanches da tarde". Estes lanches tinham por objetivo manter nossa glicemia - o nível de glicose no sangue. Fazíamos isto principalmente com frutas, bolinhos da Bauducco (que não eram da Bauducco), mandolates La Anonima, carinhosamente apelidados por nós de "cram" (explico por que em algum post futuro sobre as expressões altamente idiossincráticas que utilizávamos durante a Expedição) e castanhas do pará. Estes lanches, além de reporem nossas energias, serviam também como um momento para pormos as coisas da jornada em ordem - por onde ir, quanto gastar, que erros evitar... - ou para jogarmos conversa fora, principalmente com nerdices e observações antropológicas. As castanhas do pará, trazidas especialmente pelo Marcelo, eram a comida mais próxima que tínhamos da poção mágica do druida de Asterix: uma delas segurava nossa fome por um bom tempo. Infelizmente, tivemos que comer todas elas em Rio Gallegos, antes de passarmos pela fronteira com o Chile, país que não permite a entrada de nenhum organismo ou substância orgânica alienígena. Para substituir estas sementes, compramos amêndoas, mas não era a mesma coisa.

Por fim, gostaria de falar sobre água. Do jeito que escrevi até agora, dei a entender que nunca tomávamos água. Contudo, não há nada mais distante da realidade, pois água era o líquido que mais ingeríamos. Até El Calafate, nossa companhia era composta de três membros: eu, Marcelo e a garrafa de água mineral que compramos ainda em Buenos Aires, e enchíamos sempre que podíamos. Infelizmente, ela foi jogada fora por alguma pessoa bem intencionada, mas que nada sabia dos profundos laços de amizade que nos uniam àquela garrafa. Logo encontramos outra para desempenhar sua função, porém nenhuma que ocupasse o mesmo lugar em nossos corações. Ou algo assim. Em todo caso, a água é a substância mais importante em nossa nutrição, mais até do que a própria comida. Sabíamos disto, e por isso tínhamos especial cuidado para enchermos nossa garrafa. A Patagônia tem fama de ser fria. O que ninguém fala é que, durante o verão, ela é quente e seca, tornando a hidratação uma necessidade constante. Geralmente, tomávamos água de torneira - era o que normalmente tínhamos à nossa disposição. Claro, quando podíamos escolher entre água de torneira e água de algum bebedouro, sempre escolhíamos este último, pois tinha melhor gosto e melhor qualidade. Creio que a melhor água que bebemos foi em Torres del Paine, pois ela provinha do degelo de uma geleira próxima, fazendo dela gelada e muito pura. Lamentei muito o fato de não ter enchido nossa garrafa uma última vez em algum riacho antes de terminarmos o percurso.

Creio que poderia falar de muitos outros detalhes de nossa viagem, todavia, como creio que este texto já está grande o suficiente, contarei uma última história alimentar: depois de todas estas indiadas, voltei para casa, e a primeira coisa que consumi foi um grande caneco de leite com achocolatado. Tive diarréia por três dias seguidos depois disto. Traveling is not easy, folks.