domingo, 10 de maio de 2009

Vida Dura (Parte 23)

Decidi pegar nas panelas e cozinhar minha própria janta. Esperem pelo pior.

Televisão, Estágio e Loucura

Fazer estágio nos leva a experienciar coisas que, em nossas vidas "normais", dificilmente o faríamos. Eu, como todo guri criado na década de 1990, cresci assistindo TV, e todas as porcarias que a Globo, o SBT ou a Record resolvessem passar. Não sei se é razoável dizer que fui um perfeito viciado em TV, mas posso seguramente dizer que eu assistia muitos programas, alguns deles bons, muitos deles ruins. Contudo, depois de uma certa época, acho que a partir do meu tempo fazendo cursinho, isso mudou completamente, e este comportamento cessou quase que completamente. Atualmente, só olho TV em quando minha mãe a liga para assistir o jornal e eu passo pela sala para ir até a cozinha. Poderia argumentar que troquei um vício por outro, pois passo boa parte de meu tempo na internet (coisa que rende muitas piadas entre meus colegas de faculdade), mas não creio que seja uma comparação completamente válida, pois o conteúdo veiculado na TV é mais homogêneo, pobre e restrito do que o que aparece na internet.


Resumindo tudo em poucas palavras: não tenho o hábito de assistir TV, e estou feliz com isto. Porém, nem todas as pessoas do mundo se comportam da mesma maneira que eu. Como exemplo disto, gostaria de citar os moradores do Residencial Terapêutico Morada São Pedro, onde atualmente faço estágio básico. Todos eles passaram muito tempo internados em instituições psiquiátricas totais, como clínicas e hospitais psiquiátricos, que são locais onde frequentemente a única opção de lazer é assistir TV (ou, pelo menos, escutar a estática quando o aparelho estraga). Além disso, apesar de agora morarem em casas próprias, onde eles próprios decidem o que farão (salvo alguns detalhes), eles passam muito tempo sem sair, e fazem o que sabem fazer: sentar no sofá e assistir o que for que estiver passando.


Nesta semana que passou tive uma experiência curiosa quanto a isso. Faltando menos de uma hora para ir embora, resolvi passar em uma das casas para conversar um pouco e tomar um café. Quando cheguei lá, como sempre, estavam assistindo a Globo. Eram quase 18 horas, hora da clássica "Sessão da Tarde". Digo "clássica" por que é um daqueles horários podres que ninguém assiste, mas que precisam ser preenchidos com alguma coisa, que acaba sendo um filminho de 10 ou 20 anos atrás. Às vezes passam coisas legais, como "Os Goonies" ou "Conta Comigo" neste programa, mas na maioria das vezes são filmes ruins. Como desta vez que passei lá naquela casa do Morada - era "Velocidade Máxima 2".


O "Velocidade Máxima" original era um filme de ação com uma premissa inovadora - um psicopata instalou uma bomba ao motor de um ônibus cheio de gente, e a programou para explodir caso a velocidade caísse para 20 km/h, colocando motorista, passageiros e autoridades responsáveis em apuros, por vários motivos que tenho preguiça de enumerar. Sendo criativo, empolgante e contar com a Sandra Bullock e o Keanu Reeves como personagem principal, foi um estrondoso sucesso. Foi aí que os empresários mercenários de Hollywood pensaram em fazer uma seqüência. O psicopata foderia complicaria imensamente a vida de outros 47 clientes (sentados) da companhia municipal de transportes? Não, isso era café pequeno para eles. Por que não sonhar alto, e pôr em risco a vida de centenas de pessoas ao mesmo tempo? Dois ônibus ao mesmo tempo? Não. Um prédio inteiro? A velocidade média de um prédio é Zero km/h, o que iria contra o título da série. Então... por que não um iate transatlântico? Sim, um psicopata ameaçaria explodir um barco inteiro, junto com todos seus passageiros e tripulação por algum motivo pouco convincente. O tamanho do navio emularia o tamanho do ego do cidadão que teve essa idéia e pegaria embalo na comoção de "Titanic", ainda por ser lançado nos cinemas. Idéia genial, não?


Deve ter parecido quando foi concebida, mas quando apareceu nas telas de cinema, ficou óbvio que quem a pariu foi um executivo sanguessuga, e que arte e dinheiro deveriam ser discutidos separadamente, pois o filme é um completo lixo. Keanu Reeves teve insight o suficiente para não estrelar esta porcaria, mas mesma qualidade salutar não pode ser atribuída à Sandra Bullock, que aparentemente estava pensando só na bufunfa (especialmente durante as gravações). Surpreendentemente, justamente por ser tão ruim o filme fica tão bom. A cena do iate descontrolado invadindo uma cidade portuária foi tão malfeita que uma criança de 10 anos poderia dizer que era falso, e precisei me conter muito para não gritar "OLHA A MAQUETEEEE!" e bater os pés no chão para não matar minhas anfitriãs do coração. Contudo, não consegui segurar o riso quando, no clímax, o avião anfíbio do vilão, voando sem um dos flutuadores (como não ficou todo desestabilizado eu não sei), bate numa torre de metal de um petroleiro, cessa imediatamente de mover e EXPLODE TODO O MALDITO BARCO! Como? Não sei. Sei que tive que dizer "que filme fantástico" para explicar aquela risada.


Depois desse final apoteótico, me despedi e fui visitar outra casa. E o que estavam fazendo lá? Assistindo TV, ora bolas! Mas não era um filme a atração principal, mas um programa jornalístico. Bem, o termo "jornalístico" é aqui empregado de forma bastante ampla, de maneira tal que possamos considerar jornalismo profissional programas sensacionalistas e sem o menor rigor investigativo, pois era o "Brasil Hoje" do José Luis Datena. Eu achava que conhecia o Datena, e achava que conhecia programas "pinga-sangue" baratos que passam à tarde na TV aberta, mas Zé Luis é mais do que um âncora de em algum canal bagaceiro - ele é um artista e um revolucionário, que quebra todos os paradigmas. Quando comecei a assistir o programa, a reportagem era sobre um assalto a um posto de gasolina onde uma atendente tinha sido assassinada pelo assaltante após ele ter limpado o caixa. O Datena começou um discurso estupendamente moralista sobre o bandido, mas parou para falar com o Comandante Airton que, com seu helicóptero, sobrevoava a cidade de São Paulo procurando notícias fresquinhas. Sim, você entendeu corretamente: o Datena tem helicóptero só pra ele, procurando desgraça todo dia para dar ibope para o programa dele. E, cacete, é eficiente o tal Airton! Quando o Datena parou de falar sobre tiros desnecessários, o Comandante começou a contar a última morte ou acidente grave: "É Datena, um cidadão aqui caiu de 6 metros de altura quando concertava o telhado" - no que o Datena respondia "6 metros é alto, ele deve ter se machucado bastante". Sabe aquilo que as velhas do grupo de estudos bíblicos faz na hora do chá? Se chama fofoca. Agora, imagine se essas velhas tivessem um HELICÓPTERO para procurar assunto para elas? Essa é a essência do "Brasil Agora". E é essa a beleza do programa: ele é para o jornalismo o que a Nouvelle vague foi para o teatro! Convenhamos, é um feito e tanto, não? Também é digno de nota que, foi durante minhas horas de estágio, fiquei sabendo que Bruna Surfistinha já pensou em dizer para um de seus clientes que ele transava mal e que já gostou tanto de alguns programas que não cobrou pelo serviço.


Não pretendo, com este post, desmerecer meus amigos do Morada por terem mau gosto televisivo - primeiro por que seria presunção minha dizer que o que eles gostam é "ruim" ou "inferior", e o que eu gosto é "bom" e "superior" - levei (e levo) uma vida diferente da deles, e aprendi a gostar de programas menos barulhentos e mais sutis. O que me levou a escrever este post foi o sentimento de estranhamento que tive, tanto entre meus gostos e dos moradores, quanto das minhas reações passadas e presentes a filmes que me desagradavam. Parece-me um bom sinal que eu seja mais capaz de rir deles do que sentir-me injuriado.