terça-feira, 21 de abril de 2009

Heróis da Força

O Brunão escreveu recentemente um post muito inspirado intitulado "Arte, Quadrinhos e Revolução". Neste texto, ele relata sua experiência com HQs e mangás, que o inspiraram a viver a vida como uma grande aventura, cheia de desafios heróicos para vencermos. Ele também faz uma breve reflexão sobre qual o propósito das histórias em quadrinhos, especialmente na civilização ocidental, que tem sido até então quase que exclusivamente mercadológico, e o que elas poderiam inspirar de superior em nós.

Como meu amigo, posso relatar uma experiência similar de elevação moral com o legendarium de Star Wars. Esta história, que começou na década de 1970 com um filme, não pode atualmente ser mais chamada de "série", pois cresceu de tal maneira, envolvendo desde produções cinematográficas, programas de TV, histórias em quadrinhos e jogos, que fazê-lo seria mutilar sua beleza. Também não é mais possível chamá-la de "franquia": apesar dos direitos autorais sobre os personagens e lugares criados por George Lucas ainda estarem firmes e fortes em suas mãos (fazendo-o lucrar milhões), eles próprios já não os pertencem mais - por que, apesar de terem sido inspirados em várias outras figuras históricas ou lendárias, tornaram-se parte de uma mitologia plena e viva, que inspira milhões de pessoas ao redor do mundo, por verem ali, naquela tela de cinema ou naquela revista em quadrinhos, no sofrimento de Anakin Skywalker ou na sabedoria de Obi-Wan Kenobi, alguma coisa extremamente importante e bela, e que também faz parte de suas vidas. Estes símbolos universais, arquétipos, não pertencem a ninguém, pois estão no domínio daquilo que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. Pouco me importa se a Psicologia Analítica por ele criada seja empiricamente válida ou não - tudo que me importa é que, a maneira romântica e poética como ele definiu a natureza humana ressoa profundamente dentro de mim, e de algum jeito faz sentido, mesmo que eu não a entenda perfeitamente.

Desta mitologia moderna, o fragmento que mais teve impacto, seja em mim ou no resto do mundo, foi a Sagrada Ordem dos Cavaleiros Jedi. Apesar de ser uma tarefa homérica numa história fantástica como Star Wars alguma coisa chamar mais atenção do que o resto, é um tanto quanto fácil entender por que os Jedi recebem tanta atenção, com seus poderes de levitar objetos com o poder da mente, antever o futuro, lutar com seus sabres de luz com velocidade e potência sobrehumanas e muitas, muitas outras coisas - tudo com o auxílio da misteriosa Força. Na minha infância, nas primeiras vezes que assisti a Antiga Trilogia, foi exatamente isso que mais me impressionava. Quem não gostaria de ser um Jedi, e fazer tudo isto também? Porém, com o tempo, fui gradativamente percebendo que o grande poder dos Jedi, como seu aspecto assombroso, não eram suas habilidades incríveis, mas alguma coisa além delas. No começo, não era muito bem capaz de descrever o que seria este "algo além", mas cada vez mais aprendendo sobre ele, senão com a mente, com o coração. Fui percebendo que, aqui, nesse nosso mundinho tão sem poderes e tão sem graça, existiam pessoas com este "algo além" - que agem com compaixão, bondade, coragem, justiça, altruísmo e amor, e cuja simples presença pode acalmar o espírito mais inquieto. O "algo além" que caracteriza a essência Jedi não é um poder mágico inalcançável, e sim um poder mais do que moral, mais do que ético: é um poder espiritual. A mais poderosa e bela cena dos filmes da Antiga Trilogia, pelo menos na minha opinião, é a de Yoda descrevendo a natureza da Força para Luke Skywalker, em "O Império Contra-Ataca". O que ela tem de especial? Visualmente, não há muitos efeitos especiais, exceto o tosco boneco verde que representa o pequeno grande mestre. Mas eis que o poder dela não reside no que se vê, mas no que se sente! Ali, Yoda não faz apenas uma descrição da Força como um botânico descreveria uma flor, mas deixa brotar do fundo de seu ser como ele vive e sente a Força, e como através dela ele sente-se conectado com todo o universo. Extrapolando desta cena para a série de cinema como um todo, é isto que faz a Antiga Trilogia ser tão melhor do que a Nova Trilogia - o quanto os filmes falam diretamente com o que há de mais profundo e divino em nós. As duas contam a jornada de um herói da família Skywalker, suas provações e seu destino final. Ambas, de certa forma, tratam do destino de todos nós, seres humanos, mas os últimos filmes são por demais materialistas e politiqueiros, pondo de lado o espírito que fez os filmes antigos tão emocionantes. Claro, precisamos levar em conta o Zeitgeist (espírito do tempo, em alemão) em que cada Trilogia foi concebida - a Antiga, durante o auge do movimento Hippie e de seitas religiosas, e a Nova, durante a II Guerra do Golfo e o muito criticado Governo George W. Bush.

Contudo, apesar de acreditar que é o apelo espiritual que fez e faz de Star Wars um enorme sucesso, tenho visto com mais frequencia que o que mais chama a atenção das pessoas que vão aos cinemas ou baixam da internet assistem às séries são os efeitos especiais, e, mesmo quando a filosofia dos guerreios da Força as comove, elas não parecem acreditar que também podem pautar sua vida por ela e, assim, também serem Jedi. Como bem disse o Brunão, é mais fácil encontrar um admirador do Seiya do que alguém que sustente o sonho de realizar todo seu potencial humano. Apesar dele não ter falado em nenhum momento de seu texto em "potencial humano", mas sim em "super-herói", não faço distinção entre essas duas coisas. Talvez, por trás desta fixação material ou apatia espiritual, haja mais do que desinteresse pessoal, mas uma questão cultural de nossa época. Como disse Maslow, em 1968:

"Todas as idades, exceto a nossa, tiveram seu modelo, seu ideal. Todos eles foram abandonados pela nossa cultura: o santo, o herói, o cavalheiro, o místico. Quase tudo que nos resta é o homem bem ajustado, sem problemas, um substituto muito pálido e duvidoso"

É preciso admitir que, nos 41 anos que nos separam da época em que este parágrafo foi escrito, muitas coisas mudaram, especialmente no que diz respeito ao estudo científico dos aspectos positivos da natureza humana, com o movimento da Psicologia Positiva e suas pesquisas em Bem-Estar Subjetivo e Florescimento, e, talvez, como Maslow diz imediatamente após a parte que citei,

"estejamos aptos em breve a usar como nosso guia e modelo o ser humano plenamente desenvolvido e realizado, aquele em que todas as suas possibilidades estão atingindo o pleno desenvolvimento, aquele cuja natureza íntima se expressa livremente, em vez de ser pervertida, desvirtuada, suprimida ou negada."

Ainda assim, mesmo nos atuais modelos teóricos do desenvolvimento humano superior, sinto que falta algo de muito importante - o mesmo que sinto faltar na Nova Trilogia de Star Wars. De maneira um tanto quanto romântica, digo que prefiro ser um cavaleiro Jedi à um indivíduo florescente.

Dignidade humana?

De um certo ponto de vista, a Psicoterapia é uma profissão um tanto quanto engraçada. Não por que a existência humana seja uma comédia sem sentido como querem os nihilistas ou o sofrimento e angústia de nossos pacientes seja ridícula, mas por que os motivos que trazem as pessoas aos consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, que os fazem sofrer, geralmente são tão insignificantes que é possível rir deles, se podemos nos colocar a uma certa distância.

Eu vejo isso com meus pacientes adolescentes, entre 15 e 17 anos. Não sou tão mais velho do que eles - poderia até dizer que acabei de me formar na escola da adolescência - e as memórias do que me causava angústia três ou quatro anos atrás ainda estão vivas o suficientes para serem fortes, mas longínquas o bastante para serem vistas por outro ponto de vista, mais maduro (espero eu). É bem comum esses pacientes, especialmente durante uma entrevista inicial, ao falarem das brigas em que se meteram em casa, na rua ou em alguma festa, dizerem "eu não me importo com o que os outros pensam: a vida é minha e eu faço o que quero" como se fossem absolutos senhores de si. E, então, quando eu pergunto por que então eles brigaram, me respondem que a mãe o chamou de idiota, o cara na parada questionou a dignidade de sua irmã e sua mãe ou que aquele outro passou a mão na guria dele. Para quem "faz o que quer" e "não se importa com o que os outros pensam" é uma atitude um tanto quanto preocupada com a opinião alheia.

Psicoterapia também é um trabalho delicado. Pode ser óbvio para mim que se eles se importassem menos com o que os outros acham eles estariam sofrendo muito menos, mas para eles, o sofrimento é sinônimo de ter fama de bicha, frouxo ou qualquer coisa assim. Sei disso por que até não muito tempo atrás também eram estas as coisas que mais me assustavam. Também pode ser óbvio para mim que é muito engraçado alguém dar como justificativa para quebrar o nariz de alguém "eu tô pouco me lixando para o que os outros pensam. Além do mais, ele tava olhando torto pra mim", mas para eles, é perfeitamente normal e absolutamente sério. De que adiantaria simplesmente dizer essas coisas para quem não está preparado para ouví-las? Dizer as coisas mastigadas todo mundo faz, e não adianta nada, como aqueles programas para elevar a auto-estima das crianças bem comprovam. Estes adolescentes precisam passar por todo um processo de expansão da consciência, e perceberem por si próprios, como num estalo, o ridículo da situação. É esta expansão da consciência que todo modelo de psicoterapia busca causar em seus pacientes. Claro, muda-se o enfoque de acordo com o psicoterapeuta e sua linha teórica, mas o resultado acaba sendo muito parecido. O método socrático, usado principalmente nas terapias cognitivo-comportamentais, busca, através de perguntas, fazer com que a outra pessoa pense de formas não-convencionais sobre um assunto normal para ela, e o veja de outro ângulo, mais distante, menos sofrido e mais engraçado. Se este objetivo for atingido, pronto! Posso considerar meu trabalho como feito, por que, pode ser que meu paciente sofra novamente no futuro por causa da mesma coisa, mas será então capaz de perceber que aquilo ali é bastante engraçado se se prestar atenção, e parará de sofrer ali mesmo.

Não sei se esta é uma generalização correta, mas creio que todos os sofrimentos psicológicos decorrem disto que poderia se chamar de uma "ultradignificação de si próprio": nos cremos tão importantes para o universo que nos achamos superiores ao ridículo e ao sofrimento. Mas passamos vergonha e sofremos, e sofremos ainda mais por que achamos que não deveria ser assim. Somos, como dizem os nihilistas pós-modernos, insignificantes como poeira para o universo, ou animais com estratégias de sobrevivência que permitem construir foguetes como diria um biólogo, e poderíamos facilmente nos sentirmos mal por causa dessas afirmações. Mas e daí que somos? É indigno sermos o que somos? Nenhum outro animal se preocupa com isso. As lesmas são lesmas, mas nem por isso elas sofrem de depressão! Viver com um pouco menos "dignidade" e um pouco mais de humor certamente nos faria muito bem.