quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Alquimia do Estágio

Na sociedade ocidental contemporânea (ai, que clichê essa introdução!), os jovens geralmente passam boa parte de suas vidas estudando, e ao longo deste percurso, enfrentam muitas mudanças e crises de identidade, como diria o velho Erik Erikson. Em relação à escola, a primeira crise é quando começamos a freqüentar o jardim-de-infância ou a creche, e pela primeira vez conhecemos pessoas que não são nossos parentes. Depois, vem a 1ª série, o ensino médio, o vestibular, o começo da faculdade e o começo dos estágios. Pois é, caros amigos, como vocês bem sabem, estou enfrentando esta última crise.

Considero a “crise de estagiário” qualitativamente muito diferente de todas as outras crises que a antecederam. Quando se entra no ensino médio, faz o vestibular ou começa a faculdade, apesar da mudança de contextos e cobranças, você continua fazendo a mesma coisa – estudar. Pode ser que o 1º ano do ensino médio seja mais difícil que a 8ª série do ensino fundamental, que o vestibular exija que você decore muita coisa irrelevante (por exemplo, que Frederico Westphalen é uma cidade produtora de jóias semipreciosas) e que na faculdade você tenha que estudar assuntos muito mais específicos do que história, matemática ou geografia, mas, em essência, para superar todas estas crises a estratégia é a mesma: ler livros, fazer anotações em aula, tirar dúvidas com os professores e colegas. Quando você começa a estagiar, isso tudo, apesar de continuar importante, torna-se insuficiente, pois sua competência e aprendizado não serão medidos por provas e testes, mas na prática, atendendo pacientes, melhorando a vida deles, fazendo o que é necessário. E isso é muito mais complicado do que dissertar sobre a natureza do Self, ou discutir os aspectos teóricos das crenças centrais. De certa forma, é um pouco como ir para a escolinha pela primeira vez, com a diferença que, agora, seus erros influenciam muito mais pessoas do que seus coleguinhas, seus pais e as “tias”.

Como já disse por aqui, esta sensação de desamparo é tão grande, que quando confrontei meu primeiro paciente, pensei “tudo que estudei foi para nada!”, pois senti-me absolutamente despreparado para fazer qualquer coisa. Naquele momento, pareceu extremamente verdadeiro dizer que ler não adiantava para nada, mas esta afirmação não se sustenta diante de uma análise cuidadosa e honesta, como percebi alguns minutos mais tarde. Os estudos não me prepararam para trabalhar, mas onde e como eu estaria se não tivesse lido absolutamente nada, exceto o básico para passar nas disciplinas da faculdade (e que não é tanto assim)? Acho que é razoável dizer que eu estaria ainda mais perdido e fazendo estágio num lugar cagado como a Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS ou no CAP-SOP.

Não, para quem enfrenta os estágios, as leituras são ainda mais fundamentais. Eu poderia cair na falácia de dizer que quem começa a trabalhar deve descobrir o que funciona e o que não funciona tudo por conta própria, que a teoria não funciona na prática e que estudar é perda de tempo. Mas não vou fazer isso. Teorias são sínteses das experiências de outras pessoas, e não ler a respeito delas é jogar fora o conhecimento acumulado por outras pessoas muito boas que se dignaram a dividi-lo. Mas o problema todo não é ter conhecimento sobre o que fazer no estágio (se fosse, os filósofos teriam emprego garantido), mas saber o que fazer. Essa diferenciação entre “saber” e “conhecimento”, e a relação entre “saber” e “poder” foi descrita por Michel Foucault, pensador francês e careca. Só agora percebo o valor do que ele diz (aliás, teria esquecido completamente dele, se não fosse o Brunão me lembrar dele ontem, conversando entre um paciente e outro).

Tenho visto, nestes dias como estagiário, que conhecimento e saber são duas coisas distintas, mas intimamente ligadas – lendo eu tenho idéias sobre que intervenções fazer em uma consulta, e aplicando-as, vejo quais idéias são boas, quais não são e com quais eu trabalho melhor. Outra conversa com outra pessoa, a Mariza, psicóloga (já formada) do ambulatório pode ilustrar melhor o que quero dizer. Em um dado momento, quando ia pegar uma folha de papel para escrever alguma coisa durante uma consulta, nos esbarramos no corredor, e ela me pergunta “precisa de alguma coisa?” – perguntei se ela não teria um pouco de experiência para vender (tipo o Tome of Experience do Warcraft III, que seria realmente útil na vida real). Ela me respondeu citando um psicanalista cujo nome já esqueci que disse que, com o tempo, as nossas leituras iriam se amalgamando em nós mesmos. Achei essa uma metáfora muito bonita, e que resume bem a maneira como penso a relação entre teoria e prática.

Transformar o conhecimento em saber, aplicar a teoria à prática, especialmente em uma profissão como a Psicologia, é um processo extremamente pessoal, ao mesmo tempo simples e difícil. De forma poética, poderia dizer que é um processo alquímico, onde precisamos transformar o chumbo de nossos estudos no ouro de nossa prácita. É bom poder conversar com professores e outros psicólogos com experiência clínica (mesmo psicanalistas), pois eles podem dar idéias interessantes e nos ensinar novas maneiras de encarar um problema. Mesmo assim, eles não vão estar lá conosco quando atendemos um paciente particularmente complicado, e como vamos aplicar nosso conhecimento e transformá-lo em saber ainda é problema nosso. E eu tenho pilhas de chumbo aqui para transformar em ouro.