sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Ego e os Mecanismos de Vestibular

Ontem à tarde, depois de arrancar meus sisos, dei uma passada na Refreskata, uma sorveteria aqui perto de casa, para ir no banheiro e tomar alguma coisa gelada para satisfazer meus impulsos hedonistas (o que não foi uma idéia tão boa assim, pois com metade da cara insensível era mais difícil de engolir e sentir gosto). E, em cima de uma lixeira, encontrei um panfleto do meu antigo cursinho, o Mauá. Não há nada extraordinário a respeito deste panfleto - na verdade, é a mesma porcaria de sempre: a cara de uma suposta aluna do cursinho, aprovada com louvor em alguma universidade foda para um curso foda, dizendo "Quem pensa grande faz Mauá!". Foi exatamente isso que chamou minha atenção.

No panfleto, há a foto dessa estudante, uma marca de carimbo que dizia "APROVADO - 2º LUGAR GERAL - Medicina UFRGS" e, logo abaixo, uma listinha de todos os vestibulares que ela tinha sido aprovada: UFRGS, UFCSPA, ULBRA, FURG, UFPEL, UPF. Só faltou UCS, UNISC e PUCRS para ter conquistado todo o leste do estado, e UFSM para ter conquistado todos os vestibulares de Medicina do Rio Grande do Sul (se não esqueci de algum curso em alguma universidade obscura por aí).

Várias vezes já disse por aqui que sou empolado. Depois de voltar da Patagônia, acho que isso se agravou um pouco, pois quando li o panfleto, pensei "heh, eu devia ter me inscrito em uns 15 vestibulares pra passar em todos assim como ela". Imediatamente após este pensamento, percebi a influência de meu ego sobre meu comportamento, e concluí que deveria pegar um panfleto e levar comigo, para lembrar-me de escrever um post a respeito do meu próprio egocentrismo.

Bem, eu realmente poderia ter feito isso. Na minha época de vestibulando, havia pelo menos 35 locais diferentes oferecendo Psicologia como opção, contando todos os campi da ULBRA e outras universidades espalhadas por aí (agora devem ser 38, segundo meus cálculos). É humanamente impossível concorrer em todos estes lugares, considerando a distância e as muitas datas conflitantes. Digamos que, de todos estes vestibulares, eu poderia concorrer em 19: em Caxias do Sul, na FSG e na UCS; em Passo Fundo, na UPF e na IMED; na Grande Porto Alegre, UFRGS, PUCRS, FEEVALE, UNISINOS e FACCAT; mais para o sul, na região de Rio Grande, FURG e UCPEL; em outros cantos do estado que ignoro, umas 6 sedes da ULBRA, UNISC e UNIVATES. OK, vamos diminuir ainda mais o número de possibilidades. Digamos que eu só conseguisse fazer em 12 instituições por causa de tempo, distância e dinheiro. Teria viajado um monte, gasto uma grana violenta em transporte, hospedagem, comida de paradouro, taxas de inscrição e qualquer outra porcaria que aparecesse do nada - teria passado em todas (não falei que voltei mais presunçoso?). Provavelmente, tiraria o primeiro lugar em algumas delas, e, assim, meu rostinho lindo sairia estampado em algum panfleto colorido do Mauá, dizendo que "pra passar, tem que ser Mauá", ou alguma frase igualmente imbecil. Eu iria poder também sair dizendo que fui aprovado em 12 vestibulares diferentes. Agora eu pergunto, para que serviria tudo isso?

Creio que, exceto para satisfazer minha necessidade de auto-afirmação, não serviria para nada. Sempre tive uma certa atração por medalhinhas e penduricos, e poder encher a boca pra dizer todas as universidades cujo vestibular eu conquistei seria, para todos os propósitos, a mesma coisa - uma medalha por sigla, as mais importantes sendo das federais e as menos importantes das ULBRAs, que têm fama de aceitar qualquer um que possa pagar o curso. No fim, eu teria que fazer Psicologia em apenas um curso, mesmo depois de tamanha odisséia de provas. Creio eu que acabaria escolhendo a UFRGS - daria tudo no mesmo, com a diferença que eu teria roubado a vaga de outras pessoas (que entrariam por segunda chamada, mas que ainda assim teriam que suportar a dor de não serem aprovadas em primeira chamada) e teria muito mais motivos para ser arrogante (provavelmente seria).

Na realidade, fiz vestibular apenas na UCS e na UFRGS, e acredito que este foi o melhor caminho que poderia ter seguido: treinei aqui em Caxias para ser aprovado em Porto Alegre. Acho valoroso o esforço que muitos vestibulandos empreendem em sua busca por uma vaga, viajando até mesmo milhares de quilômetros como o maluco do Sergipe que, reza a lenda, em 2007 viajou desde seu estado-natal até o Rio Grande do Sul, fazendo todas as provas que encontrava pelo caminho. Mas mesmo assim, apesar de admirável, me parece um reflexo de grande insegurança interior, precisar viajar tanto para conseguir entrar no curso desejado. Minha presunção, apesar de tudo, não é de todo inútil ou nociva: queria estudar na UFRGS, e sabia que passaria na prova e que não precisava fazer vestibular em nenhum outro lugar (minha mãe já não é tão confiante em minhas habilidades, e por isso, só para previnir, me matriculou na UCS. Durante algumas semanas, fui um estudante de universidade particular).

E, à guisa de conclusão, apesar de não ter muito a ver com o assunto geral do post, gostaria de apontar como esses panfletos passam uma mensagem enganosa. Primeiro, são estatisticamente frágeis, pois são poucos os que conseguem o primeiro lugar geral em qualquer vestibular (até onde eu sei, é só um por ano), pouco importando onde ele fez cursinho; segundo, quem tira colocações elevadas no vestibular deve isso não tanto ao local onde estudou (se fez cursinho), mas quanto ele próprio se dedicou, além de ser bem dotado intelectualmente pela natureza e um pouco favorecido pela fortuna; terceiro, só por que o estudante do cursinho X passou em primeiro lugar na Medicina da UNIFODASTICA que todo mundo que estudar lá vai ser aprovado também; quarto, sopa; quinto, não tenho mais argumentos, mas já provei o que queria provar.

Dor e Sorvete

Arranquei dois dentes ontem. Não foram, contudo, outros dentes se não os sisos, aqueles que dizem os antigos são sinal da vinda do juízo. Pois bem, se for assim eu tinha juízo demais, pois a natureza me presenteou com o pacote completo - todos os quatro! Ontem, tirei os dois últimos. Durante toda a operação, enquanto o dentista futucava minha gengiva com facas, serrotes e furadeiras, tinha um pensamento constante em minha mente: Deus abençoe a anestesia!

Como estudante de Psicologia, ouço bastante a respeito de como as Ciências da Saúde tiveram um salto qualitativo e tornaram-se mais seguras com a ajuda da tecnologia, mas não pude deixar de reparar que a extração dentária é bastante grosseira. Basta ver as ferramentas que citei acima - são as mesmas usadas para cortar madeira e, tomadas as devidas proporções, as coisas não mudaram tanto assim desde o século XIX. Enquanto dentista desajeitadamente buscava cavar um siso de dentro de minha mandíbula, lembrei também da amputação que aparece no filme Mestre dos Mares. Não faz tanto tempo assim que operações iguais àquela eram realizadas em hospitais importantes, como a Santa Casa de Porto Alegre.

Como não foi a primeira vez que passei por esta microcirurgia, já sabia o que me aguardava: metade da cara anestesiada por três ou quatro horas (desta vez, não conseguia nem sentir minha orelha), que, assim que esvanecesse, daria lugar à dor torturante, que me deixaria com os nervos à flor da pele. Aqui, agradeço à Deus pelos analgésicos, e por poder me jogar na cama e dormir até a dor tornar-se mais tolerável.

Frequentemente se fala na "culpa judaico-cristã" que permeia toda a sociedade ocidental e impede muitas pessoas de viverem plenamente seus momentos de alegria por que não se sentem dignas de tal presente. Há, também, outro elemento autodepreciativo judaico-cristão presente em nossa cultura e que é uma grande besteira: o complexo de mártir. Esse diagnóstico pouco oficial consiste de um conjunto de crenças que dizem que, além de não merecermos a felicidade, merecemos a dor, e que devemos até mesmo buscá-la, evitando qualquer conforto contra ela como o vampiro evita a prata. Da outra vez que arranquei os sisos, tinha na cabeça que "precisava ser macho e agüentar a dor no osso". Claro, preciso admitir que isso foi hipocrisia da minha parte, por que não recusei a anestesia - só fiquei me sentindo culpado por causa dela ("que viadagem a minha! Anestésico!"). O que fiz foi postergar ao máximo tomar os analgésicos, até não suportar mais a dor. Desta vez, fui uma legítima bichinha: durante a operação, se intuísse a menor possibilidade de dor excruciante, pedia mais anestésico, tomei o bendito paracetamol assim que cheguei em casa e ainda considerei muito seriamente a possibilidade de virar um martelinho de vodka pra sentir menos dor. Foda-se o complexo de mártir.

Mesmo assim, fico pensando a respeito da dor, e quando devemos sentí-la e quando devemos evitá-la. Diz o credo hedonista que o maior bem é o prazer e o maior mal é a dor, e prega a doutrina cristã que somos vermes miseráveis que devem sofrer por que uma mulher comeu uma maçã uns milênios atrás. Estas duas crenças estão presentes em nossa cultura e nos influenciam igualmente. Também há quem acredite que sofremos tanto quanto devemos, e que não precisamos procurar mais dor ainda. Sou mais a terceira opção.
No momento, recupero-me na casa de meus pais, comendo sorvete, lendo livros e vendo filmes (recomendo fortemente que assistam "Juno". Muito bom!). Estou com metade da cara inchada, como se fosse o Kiko, sinto um pouco de dor ainda e cuspo sangue (bem menos do que ontem).