sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Dor e Sorvete

Arranquei dois dentes ontem. Não foram, contudo, outros dentes se não os sisos, aqueles que dizem os antigos são sinal da vinda do juízo. Pois bem, se for assim eu tinha juízo demais, pois a natureza me presenteou com o pacote completo - todos os quatro! Ontem, tirei os dois últimos. Durante toda a operação, enquanto o dentista futucava minha gengiva com facas, serrotes e furadeiras, tinha um pensamento constante em minha mente: Deus abençoe a anestesia!

Como estudante de Psicologia, ouço bastante a respeito de como as Ciências da Saúde tiveram um salto qualitativo e tornaram-se mais seguras com a ajuda da tecnologia, mas não pude deixar de reparar que a extração dentária é bastante grosseira. Basta ver as ferramentas que citei acima - são as mesmas usadas para cortar madeira e, tomadas as devidas proporções, as coisas não mudaram tanto assim desde o século XIX. Enquanto dentista desajeitadamente buscava cavar um siso de dentro de minha mandíbula, lembrei também da amputação que aparece no filme Mestre dos Mares. Não faz tanto tempo assim que operações iguais àquela eram realizadas em hospitais importantes, como a Santa Casa de Porto Alegre.

Como não foi a primeira vez que passei por esta microcirurgia, já sabia o que me aguardava: metade da cara anestesiada por três ou quatro horas (desta vez, não conseguia nem sentir minha orelha), que, assim que esvanecesse, daria lugar à dor torturante, que me deixaria com os nervos à flor da pele. Aqui, agradeço à Deus pelos analgésicos, e por poder me jogar na cama e dormir até a dor tornar-se mais tolerável.

Frequentemente se fala na "culpa judaico-cristã" que permeia toda a sociedade ocidental e impede muitas pessoas de viverem plenamente seus momentos de alegria por que não se sentem dignas de tal presente. Há, também, outro elemento autodepreciativo judaico-cristão presente em nossa cultura e que é uma grande besteira: o complexo de mártir. Esse diagnóstico pouco oficial consiste de um conjunto de crenças que dizem que, além de não merecermos a felicidade, merecemos a dor, e que devemos até mesmo buscá-la, evitando qualquer conforto contra ela como o vampiro evita a prata. Da outra vez que arranquei os sisos, tinha na cabeça que "precisava ser macho e agüentar a dor no osso". Claro, preciso admitir que isso foi hipocrisia da minha parte, por que não recusei a anestesia - só fiquei me sentindo culpado por causa dela ("que viadagem a minha! Anestésico!"). O que fiz foi postergar ao máximo tomar os analgésicos, até não suportar mais a dor. Desta vez, fui uma legítima bichinha: durante a operação, se intuísse a menor possibilidade de dor excruciante, pedia mais anestésico, tomei o bendito paracetamol assim que cheguei em casa e ainda considerei muito seriamente a possibilidade de virar um martelinho de vodka pra sentir menos dor. Foda-se o complexo de mártir.

Mesmo assim, fico pensando a respeito da dor, e quando devemos sentí-la e quando devemos evitá-la. Diz o credo hedonista que o maior bem é o prazer e o maior mal é a dor, e prega a doutrina cristã que somos vermes miseráveis que devem sofrer por que uma mulher comeu uma maçã uns milênios atrás. Estas duas crenças estão presentes em nossa cultura e nos influenciam igualmente. Também há quem acredite que sofremos tanto quanto devemos, e que não precisamos procurar mais dor ainda. Sou mais a terceira opção.
No momento, recupero-me na casa de meus pais, comendo sorvete, lendo livros e vendo filmes (recomendo fortemente que assistam "Juno". Muito bom!). Estou com metade da cara inchada, como se fosse o Kiko, sinto um pouco de dor ainda e cuspo sangue (bem menos do que ontem).

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