sábado, 22 de novembro de 2008

Dias de Eleição, Jogos de Poder

Já se passaram alguns dias desde o fechamento de todas as urnas, o fim das eleições para o DCE e a apuração dos votos - que indicaram a vitória da Chapa 1, seguida pela chapa 2, por nossa chapa, a 3 e, em último lugar, a chapa 4. Apesar de ainda haver um forte cheiro de pólvora no ar, e escaramuças entre facções rivais ainda acontecerem aqui e ali, tudo está decidido, e o próximo ano será o quinto do grupo que atualmente gere a instituição estudantil mais forte da UFRGS. Ainda assim, sinto que há algumas coisas para dizer sobre os dois últimos dias de votação, da apuração e do "sábado de cinzas", onde todos os envolvidos ainda estão curando sua ressaca eleitoral (seja por derrota ou vitória).

De longe, o segundo dia de pleito foi o mais agitado de todos. Enquanto eu estava no modorrento Campus Saúde, e no politicamente periférico Instituto de Psicologia, assistindo as pessoas votarem, no Campus do Vale, o mais importante em termos políticos dentro da UFRGS (tanto para movimento estudantil quanto para a política em geral), militantes da chapa 1 brigaram e agrediram partidários da chapa 2, por causa de alguns cartazes. Há grande discordância sobre os detalhes desta briga: alguns dizemque os caras da chapa 2 colavam cartazes difamando um dos principais membros da chapa 1 (adivinhem quem?), outros dizem que eles estavam arrancando cartazes da chapa 1 e colando os deles próprios, partidários da chapa 1 alegam que quem foi acusado de agressão nunca teria chance de bater na pessoa agredida, graças a diferença de tamanhos (algo como Davi e Golias), e que, na verdade, ele tropeçou nas escadarias onde estavam discutindo e caiu de costas, enquanto os membros da chapa 2 acusam a chapa 1 de truculenta e terceiros ficam se perguntando o que diabos está acontecendo. Mas algo aconteceu, e alguém da chapa 2 se machucou no Vale por causa de alguém da chapa 1, que ou cometeu um ato violento ou omitiu ajuda no momento. E isso foi o suficiente para jogar merda no ventilador.

Fiquei sabendo disso enquanto fiscalizava a urna da Psicologia, conversando com colegas de chapa e de curso. Enquanto algumas pessoas expressavam sua indignação com a falta de civilidade no processo eleitoral, eu apenas me divertia - um prazer mórbido de ver o circo pegando fogo. Mas como tinha mais o que fazer do que discutir as implicações políticas deste acontecimento, fui para casa pegar alguns equipamentos necessários para meu trabalho de Avaliação Psicológica, que seria feito naquela tarde ainda. No caminho, passei do lado da entrada para a infame FABICO - quartel-general da Chapa 1 e da Comissão Eleitoral, por alguns motivos mui suspeitos. Olhando para o prédio, vi o poderoso chefão da chapa 1, andando de um lado para o outro, falando no celular com a cara preocupada e agitada. Na hora que eu o vi, pensei "ai ai ai, eu vou acabar envolvido nisso", mas como já estava envolvido mesmo, continuei meu caminho como se nada tivesse visto de anormal. Nisso, quando passo na frente dos portões de ferro daquela faculdade, encontro um outro colega de chapa, que me intera das novidades, e explica a agitação do nosso amigo-rival. Cinco minutos antes, o poderoso chefão da chapa 2, junto com alguns capangas, apareceram na FABICO e ameaçaram os membros da chapa 1, em retaliação ao que acontecera no Campus do Vale. Também aqui os detalhes estão confusos, pois alguns dizem que isso nunca aconteceu, enquanto outros afirmam a procedência dos capangas (ora do DCE/PUCRS, ora moradores da vila Santa Maria, ora um grupo de extrema direita da Universidade Federal de Santa Maria, mostrando com clareza o famoso "efeito telefone sem-fio"), enumeram as barbaridades por eles cometidas (ameaças de agressão e estupro, bater nas janelas da sala onde a Comissão Eleitoral estava reunida, pressionar pela abertura da urna da Medicina) e a maneira como foram expulsos da FABICO (ou uma união de forças entre Brigada Militar, Polícia Federal, Segurança da UFRGS e corajosos membros do DCE e Comissão Eleitoral os expulsaram, ou que eles simplesmente sairam andando). Bem, todos estes boatos não são importantes, mas não tenho dúvidas de que algum tipo de invasão aconteceu ali do lado de casa. Depois de conversar com esse meu colega e antes de ir embora, a menina que participou da mesa durante o debate na Psicologia, aquela dos belos e assustadores olhos azuis, me chamou, me contou a mesma história e pediu para que eu avisasse meus colegas e tomasse cuidado. Achei doce da parte dela fazer isso, mesmo não me sentindo ameaçado por ninguém. Na verdade, apesar de preocupado com a segurança dela e de seu namorado, quase não consegui conter o riso por ver o fogo virar um incêndio de grandes proporções, e queimar não só o circo, mas tudo o que estava ao seu redor. Talvez se tivesse presenciado tudo não achasse tão engraçado, mas um pouco de ação durante aquela votação morna vinha bem.

Voltando para a faculdade, contei a novidade para meus colegas que trabalhavam como mesários (bebendo café), que ou ficaram mais indignados ainda, ou acharam toda a situação ainda mais cômica. Deve ser o mal daqueles que vivem em locais onde a animação depende do que acontece fora.

Ao contrário do que eu imaginava, o terceiro dia foi o mais parado de todos. Apesar da briga e das ameaças de agressão, nada de mais grave aconteceu. Talvez as pessoas envolvidas tiveram súbito insight e pararam de brigar, ou parou de ser vantajoso fazer aquilo tudo. Acho a segunda alternativa a mais provável. E enquanto esperava pelo fim das votações, conversei um pouco com alguns militantes de outras chapas. Apenas no último dia apareceu alguém da chapa 2 ali na nossa humilde e pouco importante urna. Não me pareceram monstros, nem nada do que era dito sobre eles pela chapa 1. Achei eles um tanto quanto fracos em metodologia de pesquisa e particularmente suscetíveis a preconceitos (segundo uma das gurias da chapa 2 que estava lá, as duas vizinhas que fumavam maconha eram as duas pessoas mais seqüeladas que ela conhecia, e isto parecia ser prova suficiente de que todas as drogas são ruins e fazem mal), mas nada mostruoso. Conversamos amenidades - sobre urnas, votos, drogas, seqüelas (quando chegou aqui eu dei um jeito de ir embora). Também havia militantes da chapa 1 fiscalizando nossa urna. Não há nada de extraordinário para se dizer a seu respeito, exceto que carregavam alguns walkie-talkies consigo. Achei estranho, pois, afinal de contas, para que(m) eles seriam usados? Fiquei sabendo mais tarde, através do Lorenzo, que, perdendo seu tempo tentando fazer mais racional um dos tópicos na comunidade da UFRGS no Orkut, falou que viu o pessoal da chapa 1 chamando reforços pelos walkie-talkies toda vez que uma urna era aberta na engenharia, tradicional reduto do Movimento Estudantil Liberdade, para fazer de tudo para fechá-la.

Por fim, na sexta-feira, foi feita a contagem dos votos, dando a vitória para a chapa 1 com 2300 votos, seguida pela chapa 2 com 1600 votos, nós com 505 votos e a chapa 4 com 411 votos. Demorei um pouco para acreditar nestes números, por terem sido divulgados através do Orkut, um meio de comunicação muito confiável, mas depois de pesquisar um pouco, conclui que são estes os números mesmo (estou curioso para saber da votação na Psicologia). Ao contrário das nossas expectativas, não ficamos em segundo lugar. Aliás, longe disso. Talvez nunca tivéssemos chance, exceto em nossas mentes orgulhosas e imaginativas. Meus colegas de chapa consideram a campanha uma vitória, por termos sido capazes de fazê-la de forma coerente, democrática e aberta, e que no próximo ano teremos mais força ainda para concorrer ao DCE. Tenho minhas dúvidas quanto a isso.

Na mesma comunidade da UFRGS, reações diversas. Alguns, ligados à chapa 1, exaltavam a sua vitória, enquanto membros de outras chapas lambiam suas feridas e criticavam o processo eleitoral ("Quem ganhou a eleição? A Comissão Eleitoral" dizia uma mensagem bastante irônica). Mais algumas acusações de golpismo, agressão e ditatorialismo foram trocadas, mas nada que seja digno de nota, ou mesmo divertido. Um outro tópico levantava a possibilidade de criar um DCE alternativo, enquanto uma cidadão perdido perguntava se era possível desativar o DCE. Da minha parte, fiquei elaborando as experiências vividas neste estágio intensivo em Psicologia Política. Pergunto a mim mesmo se o DCE é realmente importante para os estudantes, para a UFRGS, para a sociedade. Se pergunto para qualquer uma das pessoas que participaram de alguma chapa, terei como resposta que sim, com certeza não há nenhum órgão estudantil mais importante que o DCE. Se tivesse feito a mesma pergunta para mim mesmo três semanas atrás, responderia a mesma coisa, ainda que menos veementemente. Agora, depois de tudo encerrado, urnas fechadas, votos contados, vitórias celebradas, lutos elaborados e cartazes e panfletos ainda espalhados pelos campi, duvido que daria a mesma resposta.

Por um acaso engraçado, passei a maior parte das eleições lendo um livro do Tolstoi intitulado "The Kingdom of God is Within You". Digo que foi engraçado por que, apesar do título aparentemente teológico, ele trata das mesmas questões que vivi enquanto concorri para coordenador do Campus Saúde pela chapa 3. E as respostas que ele dá não são apenas verdadeiramente revolucionárias, como soam verdadeiras em meu coração. Para Tolstoi, os governos e Estados foram úteis em épocas passadas, quando era necessário para a sobrevivência submeter-se à vontade de um governante, que defenderia seu povo contra os inimigos e protegeria os fracos dos agressivos, mas que agora são um mal, pois fazem exatamente aquilo que deveriam evitar - entram em guerras desnecessárias e oprimem os fracos. Este livro foi escrito no final do século XIX, e muito dos motivos que o levaram a escrevê-lo deixaram de existir. Ainda assim, continua um livro atual e comovente, que nos leva a refletir. Tolstoi fala também que as pessoas atraídas pelo poder são do pior tipo que há, pois estão dispostos a tudo para conseguirem o que querem: títulos de imperador, rei, presidente, coordenador geral, coordenador de campus, ao invés de todos os valores cristão de bondade, pureza e não-resistência ao mal. Pelo jeito, ele não está tão enganado assim, se levarmos em conta toda a corrupção que envolve os Três Poderes em Brasília, e mesmo nos governos estaduais e municipais.

Mas há uma tese de Tolstoi que me parece mais importante e revolucionária. Para ele, o que sustenta o sistema político e impede o surgimento de uma ordem mais honesta e pura é a opinião pública, que, apesar de sofrer, mantêm o sistema como está por medo do que pode acontecer sem ele e que, no momento que a opinião pública perceber o malefício dos governos, eles cairão, pois não haverá quem os sustente, pois nem os governantes, nem os governados acharão ético fazê-lo. Não sei se Tolstoi está certo, mas durante a minha participação nesta eleição, tive a forte impressão de que estava apenas participando de um jogo, extremamente envolvente e elaborado, mas um jogo ainda assim, sem nenhuma conseqüência, exceto aquelas que os jogadores desejam. Sim, todas as conversas de cara séria, as trapaças, as rasteiras, as estratégias geográficas, as considerações sociológicas, foi tudo muito interessante, intelectualmente estimulante e até mesmo emocionante, mas é um jogo, e para mim, ele acabou. Talvez se tivéssemos ganho a corrida eleitoral poderíamos jogar a próxima fase desse Massive Multiplayer Real Time Strategy Game (MMRTSG), "Administrando o DCE", e eu poderia cumprir missões como "ocupar a reitoria", "fazer marcha até [digite lugar] para protestar contra [digite causa]" e "concorrer à reeleição", mas, mais uma vez, não sei se gostaria de fazer isto.

Reza a lenda que, quando Buda nasceu, um sábio profetizou que ele se tornaria ou um grande rei, e moveria as rodas do mundo, ou um grande iluminado, e moveria as rodas da verdade. Fico pensando quanto tempo perdemos nos preocupando com estas rodas superficiais que acreditamos ser a mais profunda realidade, e que caem ante qualquer brisa, e ignoramos nossa verdadeira missão neste mundo.