quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Uma Definição de Psicologia

A Psicologia é uma entidade difícil de definir ou conceituar. Fico reticente até em chamá-la de “ciência”, pois não há consenso sobre quase nada a seu respeito, nem se é ciência, nem sobre sua metodologia e muito menos suas bases metafísicas. Por isso, a definição que darei aqui é idiossincrática, baseada no que eu tenho aprendido e considerado mais apropriado. Por isso, o título deste post é “Uma Definição” e não “A Definição”. Não espero que minha definição seja definitiva, mas apenas um exercício intelectual, para pôr à prova meus conhecimentos de Psicologia e Neurociências. Colegas de curso que lerem este texto e acharem que falta explicar alguma coisa, sintam-se a vontade para comentar.

O único consenso que há em Psicologia é que seu objeto de estudo é o ser humano. O que é um ser humano é uma questão muito mais delicada, que evitarei no momento. É possível ser um pouco mais preciso, e dizer que em Psicologia se estuda o comportamento humano. Esta é a definição mais sucinta e clara que temos, mas é pouco abrangente, pois classifica como iguais coisas completamente distintas como atividade mental e atravessar a rua, sendo a única diferença entre as duas o caráter público e observável da segunda. Segundo minha própria opinião, uma definição mais precisa diria que a Psicologia estuda o pensamento, o sentimento, a motivação e o comportamento humanos, sejam eles conscientes ou inconscientes. Apesar de mais precisa, minha definição borra as fronteiras da Psicologia com outros campos e ciências, como a Sociologia, a Biologia e as Humanidades (Artes e Literatura) – o que, pessoalmente, acho muito positivo, considerando a grande interface existente entre estes e outras disciplinas.

Que estudamos o comportamento humano é óbvio – mas o que é o comportamento humano? Segundo a corrente behaviorista, é tudo o que um ser humano faz: comer, andar, chorar e pensar, e que é desnecessário, e até mesmo contraproducente, considerar a mente como sendo algo qualitativamente diferente do corpo. Isso é uma birra que vem desde o tempo de Descartes, que classificou a alma, origem do pensamento, como sendo feita de uma substância diferente da matéria grosseira que constitui o resto de nosso organismo, sendo imaterial e não-observável, em outras palavras, impossível de ser estudada empiricamente. Esta birra está sendo superada agora pelas Neurociências, que têm encontrado muitos correlatos cerebrais para atividades mentais, “materializando-a”. Não seria descabido, então, considerar a cognição como um mero comportamento. A cognição, segundo António Damásio, consiste em imagens (verbais ou não) que o cérebro humano aprendeu a “desenhar”, para auxiliar-nos a avaliar nosso ambiente, nosso estado corporal e, com base nestas informações, planejar nossas atitudes futuras, de forma a maximizar nossa sobrevivência. Entretanto, apesar de ter uma base física verificável, sua natureza ainda é muito diferente dos comportamentos expressos. Por exemplo, ao contrário do que acontece no “mundo real”, quanto mais eu tento ignorar um pensamento, mais eu penso nele. Apesar de possuírem base material, os nossos pensamentos ainda são “imateriais”, por assim dizer.

Os sentimentos, ou emoções, também tiveram problemas com nosso amigo Descartes, mas de uma natureza diferente. Cogito ergo sum, “penso, logo existo”, é uma das máximas filosóficas mais conhecidas no mundo ocidental. Um de seus sentidos é que, pode ser que nada do que vejo a minha volta exista, mas eu existo, pois sou capaz de pensar e averiguar a minha própria existência. Esta é a base de toda a filosofia cartesiana. Outro significado do cogito é a supremacia do pensamento racional sobre as paixões naturais – amor, ódio, desejo. Se sou capaz de suprimir minhas emoções, eu sou um ser humano pleno. Por muito tempo, no Ocidente, se acreditou firmemente que a única maneira confiável de tomar decisões era através da razão fria e pura, livre de todo e qualquer resquício de emotividade. Para ser sincero, esta crença ainda existe, mas não é mais possível considerá-la correta, nem mesmo cientificamente. Mais uma vez, as Neurociências descobriram que os processos mentais ditos superiores e racionais, que ocorrem primariamente no córtex pré-frontal, dependem pesadamente das atividades cerebrais que ocorrem no sistema límbico, mais especificamente o hipocampo. Esta estrutura, ao contrário do córtex pré-frontal, que é um desenvolvimento recente de nossa evolução, é muito antiga, podendo ser encontrada em animais mais simples (1), como os répteis, e está diretamente ligada com as emoções. Para ilustrar melhor isto, António Damásio, em seu livro “O Erro de Descartes” (2) relata um caso clínico. Um de seus pacientes, Elliot, tivera um tumor logo acima das cavidades nasais, e que pressionava ambos os lobos frontais (3). O tumor era benigno, mas por se localizar em lugar tão delicado, poderia ser tão ou mais fatal que um tumor maligno. Foi feita uma operação, e o câncer foi removido com sucesso. Como é de praxe neste tipo de procedimento, também foi retirada o tecido cerebral imediatamente em volta do tumor, só para prevenir. Como este tipo de câncer não tende a desenvolver-se novamente, o prognóstico de Elliot era excelente.

Contudo, qualquer um que conheça um pouco da complexidade cerebral pode dizer que haveria seqüelas, e o homem responsável, diligente e comercialmente afinado que Elliot uma vez era se tornou um completo relapso e propenso à aventuras impensadas. Depois de muitas empreitadas sem sucesso, Elliot veio procurar Damásio para conseguir um atestado médico, para se aposentar por invalidez. O curioso sobre sua situação é que, para qualquer pessoa que olhasse superficialmente para seu caso, ele pareceria um homem inteligente e robusto, pois nem suas capacidades intelectuais nem motoras foram prejudicadas, e nunca um inválido. Em exames neurológicos, foi identificado que o tumor danificara principalmente os setores orbital e mediano do córtex pré-frontal, além do cerne do lobo, a massa branca que se encontra abaixo do córtex, ter sido completamente destruído. Estes dois setores pré-frontais são responsáveis pela tomada de decisão. Já a massa branca é composta basicamente por axônios mielinizados. Os axônios são os “braços” mais longos dos neurônios, e são responsáveis em passar as sinapses adiante, e efetuar a comunicação entre neurônios distantes e células efetoras (músculos, por exemplo) e fazer com que o corpo emita um comportamento (como correr). A mielina é uma substância de coloração branca que faz com que as sinapses sejam muito mais rápidas – grosseiramente, são como um bom condutor elétrico (4), que melhora a passagem da corrente. Apesar dos meus conhecimentos em Neuroanatomia serem parcos (5), acho que é razoável dizer que, com o cerne destruído, muitas conexões importantes entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico foram perdidas. Ao falar de todas as desgraças que aconteceram em sua vida depois da operação (desemprego, divórcio, não ter dinheiro...), Elliot não demonstrava nenhum traço de emoção. Era como se ele estivesse falando de algo que lera no jornal, e não sua própria existência. Ele é provavelmente o ser mais racional sobre a face da terra, e ainda assim é incapaz de decidir o que fazer.

A motivação está intimamente ligada com a tomada de decisões. O córtex pré-frontal é conhecido como a sede das Funções Executivas. Em termos gerais, elas são responsáveis por administrar a maneira como investimos nossa energia psíquica: sobre o que pensar, o que fazer. Obviamente, fazem mais do que isto, mas não acho necessário explicar mais, e também não me sinto confiante o suficiente para fazê-lo. Mas basicamente, as Funções Executivas são a própria Vontade (6), que é voltada para as metas futuras. Sem ela, viveríamos eternamente no aqui e agora, satisfazendo nossos desejos imediatos. Ela é aquela força que te leva a treinar e correr 10 km ao invés de ficar sentado o dia inteiro assistindo TV e comendo porcaria. Por que fazemos isto? Por que temos uma meta, um motivo. Há um sentido maior para que abramos mão de nosso conforto e façamos coisas aparentemente absurdas. É o que chamo de liberdade, pois nos leva a transcendermos a nós mesmos.

Nos parágrafos acima, procurei definir e diferenciar pensamento, sentimento e motivação, e assim, justificar por que estes três conceitos deveriam ser pontos centrais a serem estudados pela Psicologia, e também pelas Neurociências. Contudo, esta diferenciação é meramente didática e para fins de pesquisa, pois os três processos estão por demais interligados para serem separados: emoções nos levam a eleger metas, que construímos utilizando imagens mentais, da mesma forma que pensar em nossas metas nos levam a sentir diferentes emoções. As combinações são muitas. Isto me leva, por fim, a voltar para o conceito final, comportamento. Como os behavioristas o definem, “comportamento” é tudo o que um ser humano faz, seja mentalmente ou fisicamente, de forma consciente ou não (7). E, de fato, pensar, sentir e perseguir metas são comportamentos, mesmo se acontecerem apenas no mundo platônico das idéias. Contudo, eles só se tornam verdadeiros quando expressados neste mundo, através de nossos organismos. Eu posso passar minha vida inteira sonhando em ser um grande lutador, pensar em milhares tipos de treinamentos para me tornar forte e ser tomado por fortes emoções toda vez que vejo um filme do Bruce Lee, mas continuar igual, preguiçoso e fraco. Levando o solipsismo ao extremo, poderia afirmar que dá tudo no mesmo no final das contas, já que todos iremos morrer. Será mesmo? Prefiro acreditar que não. Considero a missão da Psicologia entender os motivos e as maneiras pelas quais agimos e, com estes conhecimentos como base, ajudar todos os seres humanos a transformarem em ato seu mais alto potencial – em outras palavras, a Psicologia deve ajudar a humanidade a alcançar sua auto-realização e transcender a si mesma. É um processo demorado, difícil e até mesmo doloroso, pois nos obriga a confrontarmos nossas próprias fraquezas. Mas é o único caminho em direção a uma felicidade plena e duradoura.






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1. Quando digo “simples”, quero dizer exatamente isto – com cérebros menores e com menos estruturas. Não quero dizer que são inferiores ou menos evoluídos, bem pelo contrário. Na verdade, poderíamos considerar os próprios répteis como sendo mais evoluídos que nós, por serem capazes de sobreviver em ambientes muito mais inóspitos que os nossos com um sistema nervoso muito menos desenvolvido que o nosso.

2. Pobre Descartes. Assim parece que eu só critico o pobre coitado!

3. Esquerdo e direito, um para cada hemisfério cerebral, caso você tenha faltado as aulas de Biologia na escola.

4. As sinapses são sinais elétricos, mas apenas as sinapses mais simples são apenas elétricas. Ocorrem em nosso cérebro sinapses químicas também, que são mais lentas e mais complexas. Não quero ficar falando disso aqui, mas achei que era importante fazer esta ressalva.

5. Não sei como passei na disciplina de Neuroanatomia no 1º semestre. E também não sei por que cargas d’água resolvi me interessar por este assunto depois do 2º semestre. Deve ter dado tempo para extinguir meu comportamento de fuga à Neuroanatomia.

6. Que tem um outro nome bem bonito também, volição, que faz conjuntinho com cognição e emoção.

7. O que fazemos durante o sono é um ótimo exemplo de comportamentos inconscientes. Todos nós sonhamos enquanto dormimos, e muitos de nós se mexem de um lado para o outro da cama também.