segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Ser doutor sem ser médico?

A educação formal no Brasil começa cedo - aos 7 anos os pais são obrigados por lei a colocar seus pimpolhos na escola. Muito antes disso já se começa a perguntar para as crianças o que elas querem ser quando crescerem, mas a partir da primeira série esta questão se torna gradativamente mais importante e presente.

No Ensino Fundamental, ela é feita com alguma freqüência, mas pouca seriedade. Geralmente, quando o professor ou algum outro chato intrometido pergunta para as crianças mais novas com o que elas querem trabalhar, tem como resposta coisas como bombeiro, astronauta, médico (1) ou qualquer outra profissão vistosa - dificilmente as crianças respondem que querem ser psicólogos, nutricionistas ou garis. No Ensino Médio a coisa muda de figura, pois os estudantes estão quase em idade de trabalhar, e esta escolha deverá ser feita muito em breve - na melhor das hipóteses, em 3 anos. Considerando que se espera que os jovens escolham a profissão que praticarão pelo resto de suas vidas, é pouco tempo.

Diante desta escolha, alguns decidem fazer um curso técnico e entrar direto no mercado de trabalho, enquanto outros preferem encarar uma faculdade de 5 anos, aprender um ofício em profundidade, para só então, com um diploma em mãos, procurar emprego. Mas, mesmo entre os que cursam faculdade, há os que preferem continuar estudando por mais tempo ainda, fazendo especializações, mestrados e doutorados. Não sei se dá para dizer que estudantes de graduação em universidades federais são mais propensos a cursarem pós-graduações, mas posso dizer que com certeza eles são muito mais expostos à pesquisa e "produção de conhecimento" do que estudantes de universidades particulares. Também a motivação é diferente para ambos - quem busca estudar em uma federal sabe que, muito provavelmente, vai ter que se dedicar exclusivamente aos estudos antes de começar a trabalhar, ao passo que quem entra em uma particular muitas vezes vai dar prioridade ao trabalho, e cursar só duas ou três disciplinas por semestre e (com sorte) usar o que aprender para melhor seu desempenho profissional. Claro, nem sempre é assim, mas é bem freqüente.

E foi assim comigo. No Ensino Fundamental, não pensava no que queria ser (e se pensava, não era muito sério); no Ensino Médio, eu era obrigado a pensar, por que os professores não paravam de falar no vestibular e como era importante para nossas vidas estudar e entrar para a faculdade para estudar ainda mais. Às vezes, parecia que eles tinham uma visão muito estreita da realidade, pois davam a entender que o único caminho disponível para nós era o Ensino Superior, quando na verdade não é (2). Cheguei no fim do Terceiro Ano querendo cursar Direito. Ainda bem que adiei meu vestibular e fui para os EUA fazer intercâmbio. Isso me deu mais tempo para pensar e chegar à conclusão de que queria fazer Psicologia. Agora, estou no segundo ano da faculdade. Por enquanto, posso me afundar nos livros e estudar feito um condenado sem ter que pagar minhas contas, mas depois que me formar, as coisas mudam de figura. Entre as minhas opções, está fazer mestrado e depois doutorado, além de começar a trabalhar assim que for possível. Sinceramente, por mais que ache que eventualmente engatarei um mestrado, não quero fazer isto logo após terminar a graduação, e muito menos na UFRGS. Adoro este lugar, mas por favor, depois de 5 anos (ou mais) eu quero conhecer outras universidades. Além disso, eu já tive as aulas da pós-graduação, pois a grande maioria dos professores só dá uma aula - o mesmo conteúdo, a mesma entonação de voz e as mesmas piadas (se existirem) foram contadas para todos os seus alunos, tanto de graduação quanto de pós.


Mais do que isso, não quero passar o resto da minha vida dentro da academia, e me tornar como alguns de meus professores, que parecem não saber como as coisas funcionam fora de seu mundo encantado. Talvez um dia eu vire doutor sem fazer Medicina, mas no momento, não consta na minha lista de desejos passar mais 6 anos estudando.










-------
1. "médico da cabeça" é algo perfeitamente plausível de uma criança dizer, mas pode significar tanto psiquiatra quanto psicólogo ou neurologista.

2. Digo isso por experiência própria. Um dia, no colégio, estavam nos oferencendo a oportunidade de fazermos uma prova simulada da Unisinos. Por mais achacados que fossemos para fazer esta porcaria, não era obrigatório, e eu preferi usar minha manhã para correr atrás da papelada para meu intercâmbio (naquela altura do campeonato eu estava alucinado para juntar tudo que precisava em uma semana). Fui no colégio lá pelas 9 horas para pegar a assinatura da diretora, mas acabei sendo levado pela coordenadora pedagógica, Rita, para a sala de aula para fazer o simulado. Pensando nisto agora, me dei conta de como fui tratado como pirralho mesmo tendo 17 anos, mas na época estava tão acostumado com isto que nem me dei conta. O tempo necessário para decidir que não iria fazer a tal prova foi o tempo que levei para sentar na minha carteira e descobrir que o tamanho mínimo da redação eram 60 linhas. Saí da sala quase imediatamente, encontrei a coordenadora pedagógica e a tia do SOE, Leda (vulgarmente conhecida como "Cotonetão" ou "Beavis"), e num arroubo de assertividade, pedi mais uma vez para falar com a diretora. Tive que ouvir como resposta da Rita que eu deveria estar fazendo o simulado, e não correndo atrás de coisas irrelevantes como "intercâmbios", e da Leda que, se ela fosse minha mãe ela estaria muito preocupada com minhas atitudes (o que não deixa de ser engraçado, já que ela tem seus 60 anos, é solteira, não tem filhos, é provavelmente virgem e provavelmente assim morrerá).

Em Busca da Liberdade

Biologicamente, não somos livres. É uma frase impactante, que choca quase todos os que a lêem. Entretanto, qualquer neurocientista ou pessoa que entenda um pouco mais sobre o assunto a encararia como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. E de fato, somos biologicamente determinados - temos sobre nossos ombros o peso de milhões de anos de evolução, passados em mundo material com leis físicas invariáveis e constantes, que determinaram nossos polegares, nossos neurônios, nossos instintos e nossos comportamentos reflexos. Nesses milhões de anos, nossos ancestrais passaram a maior parte de seu tempo em ambientes selvagens, como florestas e estepes, e fazem apenas 3 ou 4 mil anos que nos estabelecemos em cidades. Podemos ter deixado o mundo selvagem, mas o mundo selvagem não nos deixou: ainda somos animais, macacos pelados com mania de grandeza. Além disso, mesmo na dita "civilização", nossas atitudes são fortemente influenciadas por nosso ambiente, tanto físico e social, ou, como Skinner chamou, pelas contingências e metacontingências de reforçamento.

Entre todos estes determinantes físicos, biológicos e sociais, sobra pouco espaço para fazermos algo realmente espontâneo, verdadeiramente nosso. Quase não somos livres, e há quem diga que não somos livres em absoluto. A Ciência já nos deu muitas provas de que vivemos presos em nossos corpos, mas não é preciso abrir uma revista especializada em Neurobiologia para chegarmos a esta conclusão. Basta olharmos em nossa volta, para todos os que nos cercam e para nós mesmos. Quantas vezes não pensamos apenas em nós mesmos e ignoramos todo o resto? Quantas vezes agimos egoisticamente, mesmo sabendo que poderíamos ter sido nobres? Um psicólogo evolucionista diria que isto é absolutamente normal, pois a mãe natureza nos ensinou a lutarmos primeiro por nossas vidas e depois pela dos outros - mesmo a vida social é um reflexo disto, pois a chance de sobrevivência é muito maior em grupos grandes. Por que, então, ainda insistimos nesse mito que é a liberdade? Por que, mesmo golpe após golpe da Física, da Biologia, da Sociologia e da Psicologia, ela ainda se sustenta em seus leves fios metafísicos?

Paradoxalmente, mesmo com todas estas evidências contrárias, ainda nos apegamos ferrenhamente ao nosso ideal de liberdade, ou melhor dizendo, parece que, a cada artigo de neurociência que sai reforçando nosso determinismo, mais nos aferramos ao ideal de liberdade. E, mais paradoxalmente ainda, é esse ideal, talvez miragem, que nos faz melhores. Pesquisas científicas mostraram que é justamente quando não se acredita em livre arbítrio que mais se trapaceia e mente. Quando somos levados a crer que não há escolha, agimos da forma que somos esperados - em benefício próprio, mesmo que em detrimento dos demais. Mas ao contrário, se nos é dada a opção, se nos é mostrado que podemos ser diferentes, escolhemos por sermos o melhor que podemos ser. E se os neurocientistas têm descoberto cada vez mais evidências de nossa escravidão, os clínicos - médicos, psicólogos, enfermeiros e todo e qualquer profissional que trabalhe diretamente com seres humanos - têm feito justamente o contrário, estimulando que seus pacientes e clientes busquem cada vez mais sua própria autonomia. Surpreendentemente, tem dado certo!

Seria isso uma ilusão? Um condicionamento operante mui sofisticado que a natureza desenvolveu? Não sei. Apenas acredito que é muito mais do que isso. Podemos ter toda a história em nossas costas, tanto da humanidade inteira quanto nossa própria, guiando nossos passos e os determinando, mas sempre podemos agir de uma forma completamente diferente, indo contra tudo que nossos genes e nossas famílias dizem. O passado é imutável, e deixa uma marca indelével em nós, e o futuro existe apenas em sonhos. Mas o presente, o aqui e agora existe - é a folha em branco do livro de nossas vidas que encaramos agora, e que espera para ser preenchida. É nesse vazio, onde nenhuma escolha foi feita ainda, que reside nossa fugidia liberdade.

Talvez isto que chamo de liberdade não seja liberdade verdadeira, apenas o começo da trilha que nos leva até ela. Talvez não estejamos prontos para saber o que realmente é ser livre, e devemos primeiro caminhar uma longa jornada presos em nossos corpos, instintos e preconceitos, e gradativamente nos libertamos de seus grilhões - não digo abandoná-los, mas nos tornarmos capazes de fazer o que queremos e o que devemos com sua ajuda, e não apesar deles como ocorre agora. Há na internet um vídeo curta-metragem bem famoso, chamado Dance, Monkeys, Dance. Em poucas palavras, é um documentário sobre a raça humana, feito nos mesmos moldes dos tantos documentários que fizemos sobre outros animais - com um ar de superioridade e prepotência, pois, afinal, somos só macacos. Foi isso que o professor de Genética disse em nossa primeira aula: não passamos de macacos. E, realmente, como esquecemos que somos animais e fingimos que somos superiores, apenas para cometer crimes que chimpanzés não cometeriam? Mas não posso concordar com o professor. Não em tudo, pelo menos.

A maioria das pessoas que assistem ao vídeo prestam atenção apenas no fato que o narrador nos chama repetidamente de macacos (posso apostar que muitos que assistiram a este vídeo devem ter se sentido profundamente ofendidos e/ou humilhados), e como agimos de forma imbecil e mesquinha ao longo de nossa história, e deixam passar uma pequena frase, que considero a mais importante de todas: "os macacos têm tanto potencial, se apenas eles se aplicassem". Este é um dos motivos mais fortes que me mantém cursando Psicologia - por que eu sinceramente acredito que podemos ser mais do que somos. Por este motivo, não acho que sejamos só macacos. Considero um erro acreditar que somos superiores aos outros animais, mas ao invés de dizer que somos "só macacos", prefiro dizer que os demais animais não são "só bichos". Cachorros são mais do que criaturas de 4 patas que babam no carpete e correm atrás de carros, assim como gatos não são só auto-lambedores eficientes. Somos todos seres vivos, dignos de respeito e capazes de crescer, aqui e agora, neste mundo, bastando apenas nos dedicarmos.