segunda-feira, 9 de junho de 2008

Vida Dura (Parte 13)

Acabei de receber um e-mail intitulado "Filosofia e Psicologia", encaminhado através da infame lista de e-mails da Psicologia da UFRGS, a Tomada do DAP. Fiquei a princípio empolgado com a idéia, pois me interesso por Filosofia e suas relações com a Psicologia. Mas alegria de pobre e amolador dura pouco: só precisei ler o e-mail pra desanimar completamente.

Basicamente, o pessoal da Filosofia da UFRGS quer fazer um curso de extensão sobre Psicologia e Filosofia. Excelente. Mas daí cheguei neste trecho da mensagem:

pensamos em sugerir para ela [a palestrante] algo entre Hegel e Lacan ou, então, mais geral, entre arte, filosofia e psicologia, ou pode ser algo em Freud mesmo... mas, seria algo entre estes temas...

Hegel eu nunca li, mas se vier em dobradinha com Lacan, não vai prestar. E misturar arte, filosofia e psicologia é coisa de psicanalista lacaniano. Só faltou Deleuze e Guattari pra lista ficar completa.

Respeito quem gosta dessas teorias, mas acho deprimente que mesmo em cursos de extensão tenhamos que ver as mesmas coisas que vemos em aula. Mandei uma sugestão de vermos as relações entre os existencialistas, os humanistas e a Psicologia. Mas duvido que alguém preste atenção em mim.

Ó Céus, por que ainda espero alguma coisa dos outros?

Como a Internet Funciona

A Internet:
Onde os Homens são Homens
Onde as Mulheres são Homens
E as Crianças estão falando com este cara...
Não é exatamente o que considero um "post de qualidade", mas que é verdadeiro, ah é!

Vida Dura (Parte 12 - Subparte II)

Quase lá...

Vida Dura (Parte 12)

Essa massa disforme na foto são minhas roupas, e o chão é meu armário. Mamãe ficaria orgulhosa.

Problemas com disciplina

E depois de escrever um catatau imenso sobre a importância da disciplina, estou tendo alguns problemas disciplinares pessoais: dormi tarde, acordei mais tarde ainda, tenho um texto pra ler, muitos trabalhos por fazer, louça gordurenta pra lavar e até agora não fiz nada disso.

Eu me impressiono comigo mesmo. Eu intercalo momentos de disciplina shaolin com momentos de indisciplina total.

Minha História de Guerreiro

Ontem fiz meu exame de faixa no Kung Fu. Comecei a treinar ainda em Caxias do Sul no meu primeiro ano de ensino médio, em 2003, no Centro Cultural Chinês. Entretanto, durante os primeiros três anos não levava as coisas muito a sério: ia aos treinos e conversava, faltava aula por preguiça, não praticava em casa, e por aí vai. Foi ainda em Caxias que fiz o primeiro exame de faixa no Kung Fu – da branca para a amarela. Até hoje tenho dificuldades em explicar como eu consegui passar aquela vez, levando em consideração todo esse contexto de vadiagem. Mas, milagrosamente ou não, passei. Lembro-me até hoje do meu orgulho de poder usar a camiseta e a faixa amarelas, novinhas, ainda não ajustadas ao meu corpo.

Mas meu progresso na hierarquia da Arte Marcial ficou por aí por um bom tempo. Até 2005 não me empenhei muito em fazer outro exame. Eu bem desejava trocar de faixa novamente, mas a experiência do exame fora bem podre, e eu era bem mais preguiçoso do que hoje. No início de 2006, fui para os EUA e, obviamente tive que parar os treinos de Kung Fu Garra de Águia. Entretanto, apesar de ser vagabundo, resolvi que não iria parar de treinar Artes Marciais, e por isso procurei uma academia de qualquer coisa que tivesse nas redondezas. Passei a treinar num dojo de Karatê numa cidade próxima à minha, e quando podia praticava as formas de Garra de Águia que já sabia. Não era muito, mas mantinha a chama do Wushu viva em mim. Considerava isto extremamente importante.

E foi lá, nas geladas terras do Wisconsin, que descobri o valor e o poder da disciplina. OK, admito que esta frase parece ter saído de um livro de auto-ajuda. Mas em minha defesa, devo dizer que livros de auto-ajuda nunca falam em disciplina – só em pensamento positivo e coisas do gênero. Não que o pensamento positivo não ajude nos treinos, bem pelo contrário, e pode dar grande força em um momento difícil (por exemplo, quando o professor inventa de mandar você fazer um exercício que infringe as leis federais e da física), mas é insuficiente para conquistar o próprio corpo à longo prazo. Os psicanalistas adoram falar na “cura pela fala” e pelo insight, mas eles ignoram que, sem mudança comportamental, não adianta nada dez anos fazendo análise três vezes por semana. Foi isso que aconteceu comigo nos EUA: eu aprendi a treinar. Pior: eu aprendi a gostar de treinar! Os treinos de Karatê foram importantes neste processo, já que era sempre um prazer treinar uns socos, chutes e de vez em quando uma lutinha de verdade. Mas foram os treinos de atletismo, as insanidades de correr 30 minutos todos os dias, fizesse sol ou chuva, que temperaram o aço do meu ser. Já tinha uma grande tendência para desafios físicos, mas foi esta prática contínua deles que me ensinou, pelo menos em parte, como encará-los e como vencê-los.

Quando voltei na metade do ano para o Brasil, sentia-me extremamente motivado para os treinos de Kung Fu. Mas seis meses fazendo Karatê e quase não treinando Kung Fu tiveram seus efeitos negativos, e eu tive que reviver todas aquelas memórias procedurais que estavam adormecidas em mim. Por um lado, isso foi um tanto quanto chato pois toda aula era mera revisão, mas por outro, foi bastante positivo, pois pude treinar de forma mais adequada coisas que não tinha aprendido direito, e ficar mais afiado ainda no que já estava bem. Como ainda era vestibulando e tinha aula só de manhã, tinha as tardes e as noites livres. Estudar Química? Isso é para os fracos. Eu treinava! Não digo que tornei-me o Batman da noite para o dia e passei a treinar todos os dias, as tardes e noites inteiras das maneiras mais absurdas e masoquistas possíveis. Primeiro por que os hábitos de vagabundagem ainda eram (e são) fortes em mim, e por mais que eu quisesse não conseguia. Segundo, tentar fazer muito mais do que se é atualmente capaz só serve pra desistir dos treinos. Mas confesso que me superei. Treinava não só na academia com o professor, mas também em casa, na garagem do apartamento dos meus pais. Cheguei a treinar três noites por semana em casa, ao ponto de chegar na aula e não ter nada para treinar de fato, apenas tirar dúvidas e acertar movimentos. Acho que foi nessa época que ouvi o primeiro elogio vindo do professor. Estava mostrando para ele uma forma, quando ele me perguntou “tu andou treinando em casa?”. “Sim” respondi “por quê?”. “Tá bom”. Levando em conta quanto meu professor é exigente, isso foi bastante. Também foi por essa época a primeira vez que, em uma aula de apresentações, onde demonstrávamos as nossas técnicas para os demais, não fiquei devendo flexão nenhuma. Fui lá, fiz as formas impecavelmente e pronto! Nenhum demérito. Estava indo muito bem, e se as coisas continuassem daquela maneira, eu poderia fazer outro exame e finalmente trocar de faixa. Mas a vida, a vida é uma caixinha de surpresas, e apesar das mudanças que aconteceram na minha não terem sido tão drásticas quanto as de Joseph Climber, foram suficientes para bagunçar toda minha rotina: tinha passado no vestibular da UFRGS.

Se tivesse me contentado em estudar Psicologia na UCS, ou na FSG, poderia ter continuado meus treinos em Caxias mesmo, e estar agora na faixa azul. Mas como já não agüentava mais o ar carregado e opressivo da cidade onde cresci, e a UFRGS ser de graça, decidi vir morar em Porto Alegre. No começo, voltava todo final de semana e treinava lá na academia com o professor, mas com o tempo esse esquema foi se desmanchando: comecei a passar os finais de semana em Porto Alegre, e mesmo naqueles que voltava para Caxias, não ia treinar por causa do cansaço (e da preguiça também). Se quisesse continuar praticando Kung Fu, precisava encontrar outra academia para treinar, aqui, na capital gaúcha. Esta procura demorou um pouco, mas tive sorte, e encontrei o Centro Cultural Chinês de Porto Alegre, onde ensinam o mesmo estilo que treinava em Caxias.

Geralmente, quem quer começar a treinar no CCC aqui de Porto Alegre faz uma aula experimental, para ver se quer ou se agüenta mesmo. Como já sabia que queria e que, sim, eu agüentava o tranco, pulei essa parte e fui direto para as aulas de verdade. Contudo, como meu uniforme ficara na casa dos meus pais, fui no meu primeiro treino usando um abrigo chinelão e uma camiseta promocional do Banco do Brasil. Isso foi o suficiente para o monitor dessa minha primeira aula chegar perto de mim e dizer “olha, no começo de todas as aulas, a gente cumprimenta o professor assim e o santuário assim”. Pronto. Voltei a ser faixa branca. Expliquei para o camarada a minha situação, que treinava em outra academia de Kung Fu Garra de Águia anteriormente, e que queria continuar meus treinos em Porto Alegre. Tanto ele quanto os professores entenderam a minha situação, mas, de novo, tive que voltar a treinar as coisas mais básicas do Wushu. Não estava completamente enferrujado ou esquecido, mas a maneira como as técnicas são ensinadas aqui é muito diferente da qual estava acostumado. Passei três anos treinando no mesmo lugar, com o mesmo professor, que não é muito criativo ou imprevisível. Costumeiramente, ele dá apenas três tipos de aulas, que podem ser diferenciadas umas das outras pelo aquecimento inicial: parado, correndo ou correndo no lugar. Cada tipo segue sempre a mesma rotina e depois de alguns meses treinando já se sabe instintivamente o que fazer. Em Porto Alegre, são três professores diferentes, que dão aulas com o apoio de quatro ou cinco monitores diferentes. É possível fazer distinções entre os professores e seus estilos de ensino, mas não dá pra dizer com certeza o que vai acontecer em seguida no treino. Eu tive que fazer mais do que aprender umas coisas e rever outras: tive que assimilar uma cultura completamente diferente.

Mais uma vez, não achei ruim começar quase do zero novamente, pois tinha muita coisa nova para ver em Porto Alegre. Além disso, é benéfico ter aulas com professores diferentes. Enquanto o Fábio é conhecido por seus treinos fisicamente puxados (é ele quem mais gosta de quebrar leis da física), o Sérgio, dono da academia, gosta mais de dar mais ênfase nas técnicas, e o Roberto fica no meio-termo, às vezes quase que só ensinando técnicas, às vezes fazendo a gente pagar mais flexão que soldado raso no exército. Em Caxias, o Adilson (devia ter dito o nome dele antes) fica no meio termo também, mas se fosse definir sua especialidade, seria o treino psicológico – já contei histórias suficientes de como ele gosta de criticar alunos mais novos. Poderia dizer que ele faz isso por sadismo, mas acredito que é uma forma de testar, ver quem continua ou não e fortalecer-nos contra abusos verbais. Funcionou pra mim, pelo menos. Enfim, cada aula é diferente da outra, pois treinamos aspectos diferentes. É uma divisão um tanto quanto arbitrária esta que fiz, entre professores e ênfases, mas ela é meramente representativa.

No começo, todos os treinos eram bem cansativos. Raro o dia que não voltava quase mancando ou me arrastando para casa. Achava isso bom, pois sentia que estava realmente me esforçando e progredindo. Gostava tanto dessa sensação de dever cumprido que, quando senti que não ficava mais cansado depois de um treino relativamente “pegado”, pensei que poderia não estar me esforçando o suficiente. Mas não foi só isso que percebi de diferente em mim. Certo dia, como que por um estalo, notei que meus movimentos corporais estavam mais harmoniosos. Tudo isto, junto com conversas com professores, monitores e colegas, me fez ver que não estava sendo vagabundo, mas que na verdade ascendera para um nível mais elevado, e que só então fui capaz de perceber. Estou mais forte, veloz e habilidoso do que nunca. Não que isto signifique grande coisa, pois ainda me considero fraco, lento e desengonçado, pelo menos mais do que gostaria, e que preciso treinar muito ainda.

Contudo, de uns tempos para cá, apesar de dar meu máximo, não sentia muito progresso. Os treinos da faixa amarela não só se tornaram fáceis como monótonos, e torcia todos os dias que ia para a academia que fosse colocado para treinar junto com os mais velhos. Percebi então que estava na hora de mudar, dar uma sacudida na poeira que baixava sobre a minha agora gasta e quase rasgando camiseta amarela, e tomei uma decisão definitiva: eu iria fazer o exame para a faixa verde. Tinha visto o pequeno cartaz do exame colado no espelho da academia, mas estava em dúvida se deveria fazer ou não. Temia não passar ou perder tempo que poderia usar para trabalhos da faculdade com treinos desnecessários. Estas dúvidas, apesar de permanecerem em meu espírito, tornaram-se meras sombras do que antes eram. Realmente, o risco de rodar existe em qualquer exame, e as pencas de trabalhos da faculdade até agora me apavoram, mas seria muito pior se eu nem ao menos tentasse.

A decisão estava tomada. Paguei a taxa de inscrição na terça-feira, e fui treinando quando podia. Por causa da minha agenda cheia, só consegui treinar este final de semana: sexta, sábado e domingo de manhã. Um “pré-exame”, algo parecido com um pré-vestibular, fora oferecido, mas já tinha acontecido quando tomei minha decisão definitiva. Não acho que teria feito muita diferença, contudo.

Pois bem. Ontem de manhã, dirigi-me de baixo de chuva para o Centro Cultural Chinês, pensando se seria uma boa idéia treinar justo antes do exame. Finda a aula, voltei para casa, almocei bem e dormi para repor minhas energias. Tinha dormido bem durante a noite, mas precisava estar em condições físicas e psicológicas ótimas. Saí da cama às 16 horas, peguei meu uniforme (menos a gasta camiseta amarela, que neste exato momento impregna o apartamento inteiro com seu cheiro de suor acumulado de três dias) e fiz mais uma vez o caminho para a academia. Cheguei lá, e os faixas brancas que prestaram exame para a faixa amarela ainda estavam lá, ouvindo a preleção final do professor Sérgio. Na primeira passada de olhos que dei, achei toda a cena impressionante, especialmente os professores e monitores vestindo roupas completamente pretas contrastando com os alunos sentados no chão, com suas camisas brancas e calças pretas. Mas depois que Sérgio explicou todo o significado dessas cores, que o branco representa a pureza de espírito e ideais elevados, que o preto das calças representa a força para realizar estes ideais, e que a roupagem completamente preta dos instrutores representa o desapego ao yin-yang, ao eterno ciclo de sofrimento deste mundo, a cena tornou-se muito mais do que isso: tornou-se numinosa.

Esperei pacientemente pelo começo do nosso exame. Como já tinham me dito anteriormente, foi como uma aula normal, só que menos cansativa. Porém, eu estava com os braços completamente suados, apesar de não ter feito nada de especial. A última vez que isto aconteceu foi quando resolvi treinar depois de passar uma noite em claro. Não foi nada bom fazer aquilo. Talvez treinar de manhã não tenha sido uma idéia tão boa quanto parecia antes. Em todo caso, deu para agüentar o tranco. Sempre que possível e necessário, parava e respirava fundo. Isso funciona às mil maravilhas para recuperar energia. Não tenho muito que relatar do exame em si: dei o melhor de mim, fiz algumas cagadas, essas coisas de sempre. Se a dúvida que lhes atormenta é saber se passei ou não, digo-lhes que tenho evidências que corroboram minha hipótese de que, sim, passei pra faixa verde. O que realmente me marcou foi a parte final do exame, quando tivemos que dizer os comprometimentos do Kung Fu. São 9 itens, e tínhamos que dizer apenas os três primeiros. O professor falou da importância e significado de cada um: treinar o corpo e o espírito para a paz; reverenciar os ancestrais e respeitar mestres, professores e colegas; não ser falso e seguir o caminho da verdade. Então, pediu para que os monitores nos passassem os três seguintes: persistir no aperfeiçoamento físico, mental e espiritual; ser paciente e humilde, galgando um a um os degraus do conhecimento; contribuir para que nosso meio não ofereça refúgio para pessoas mal-intencionadas. Eles não nos passaram estes comprometimentos como mera matéria de aula, mas como um norte a nos guiar de agora em diante, e como um dever a cumprir como guerreiros. Conheço todos os nove comprometimentos desde meu tempo em Caxias, e muitas vezes os ouvi e repeti, mas nunca antes eles causaram tamanho impacto em meu ser. Sempre que estou na academia, sinto-me em paz comigo mesmo e com o universo, e que estou no lugar certo para mim. Esta sensação foi reforçada depois do exame, de uma forma que um simples treino não seria capaz.

Como eu queria, o exame sacudiu a poeira que se acumulava em mim, e renovou minha vontade de crescer e ir além de mim mesmo através do Wushu. Isto foi muito mais importante do que passar ou não de faixa.