quarta-feira, 30 de abril de 2008

Mais um de meus nobres vícios


A Cultura Urguiana

Acho engraçado como dentro de uma mesma cidade, por divisões meramente burocráticas, criam-se subculturas diferenciadas. A UFRGS é um caso típico deste fenômeno. Como muitas pessoas, sejam elas funcionários, estudantes ou professores, passam longos períodos de tempo dentro da universidade (como eu, que tenho dias que entro às 9 da manhã e saio às 19:10), acaba-se criando um dialeto, um folclore e práticas próprias.

A prática mais visível é a de descascar laranja com a colher no RU. Ninguém sabe quem inventou essa prática nem quando, mas sabe-se que foi por causa das facas ruins do amado bistrô, que mal e parcamente cortam a carne oferecida (1). Outro hábito comum a todos os estudantes da UFRGS é falar mal do RU – pode ser que não exista comida mais deliciosa no mundo que a comida subsidiada que comemos, mas mesmo assim, xingamo-la sem dó (talvez seja aí que resida todo o seu sabor). Comparar a comida dos 4 restaurantes que temos por aí é outra prática comum, e nunca se chega a um consenso de qual restaurante é o melhor (falei mais disso num post mais antigo). Mas há outros hábitos mais sutis.

Um desses hábitos é a nomenclatura. Dentro da UFRGS, há muitas unidades orgânicas e departamentos diferentes. Como vários tem nomes compridos demais, é comum falar apenas suas siglas. A Faculdade de Medicina vira a FAMED, a Faculdade de Educação vira FACED, e a Faculdade de Farmácia vira FACFAR. O Instituto de Ciências Básicas da Saúde é chamado apenas de ICBS, e o Instituto de Biociências vira o Biociências, ou simplesmente o “Bio” (2). E vai mais longe do que isso: lembro-me do meu colega Filósofo (assim chamado por ser formado em Filosofia), quando falávamos das loucuras que tínhamos que ver em aula, falar que os facedianos faziam a mesma coisa.

Estes nomes e siglas são óbvios para quem está dentro da UFRGS, mas para pessoas externas, devemos ter um pouco de senso comum, e falar o nome por extenso dos locais e das unidades. Em certos casos, devemos ser ainda mais específicos, e falar o que o tal departamento faz. Quando falo na Faculdade de Medicina, fica bem claro o que quero dizer. Mas quando falo no Instituto de Ciências Básicas da Saúde não. Nesse caso, eu preciso dizer “o instituto onde temos aulas práticas de anatomia e fisiologia” para que tudo fique claro. O próprio RU precisa ser explicado às vezes como sendo o Restaurante Universitário. O RU!

Há diferenças entre os diversos campi da universidade, tanto que é possível dizer que existem pelo menos 4 universidades diferentes dentro da própria UFRGS, sem contar o Instituto de Artes (devidamente chamado de IA), a Escola de Administração, as Faculdades de Agronomia e Veterinária, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (mais conhecido como IPH) e o Ceclimar em Imbé. Contando todos estes, temos 10 UFRGS diferentes.

Já falei dessas diferenças de maneira jocosa anteriormente, mas não me aprofundei muito (até por que meu intuito era avacalhar, não fazer uma análise sociológica). Não posso afirmar nada, até por que o que sei é baseado no senso comum dos estudantes e no que pude observar de forma não sistemática, mas algumas diferenciações são possíveis de serem feitas. Por exemplo, os estudantes dos cursos do Campus do Vale são muito mais sociáveis e metidos em revoluções semanais do que os estudantes do Campus Saúde (meu campus), devido à configuração geográfica dos prédios – no Vale, os prédios dos diferentes cursos são próximos, enquanto que no Saúde tem grade para tudo quanto é lado. Mesmo entre cursos no mesmo campus as diferenças existem. Uma das mais gritantes que vejo é entre a Psicologia e os estudantes da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação – FABICO, de agora em diante chamados de Fabicanos. Nós na Psicologia somos muito mais propensos a refletir sobre as questões que nos envolvem, enquanto que os fabicanos têm uma tendência muito maior de fazer passeatas e invadir reitorias (especialmente os da Comunicação, que dominam a atual gestão do DCE). Não estou dizendo que isto é bom ou ruim, apenas que é diferente.

Também cria-se um folclore diferente de acordo com o campus. No Vale, há o infame Tio da Pastilha, que aborda todos os que ali estudam, dizendo “vai uma balinha pra ajudar o amigo?” (nem eu escapei de ouvir essa infame questão). Tão famoso é o cidadão que fizeram uma camiseta com os dizeres “EU NÃO QUERO A DROGA DA PASTILHA!” (3). Na Escola de Engenharia, há a lenda viva de Klaus, o viking, que há mais de 12 anos faz as cadeiras de cálculo, e suas eventuais incursões por outros cursos da UFRGS (ano passado ele começou a vir para as aulas de Fisiologia da Psicologia. Sim, foi meu colega, e é uma figura).

A maior diferença entre o Vale e o Saúde é em relação aos cachorros. Enquanto que no Vale tem cachorro pra todo lado, e frequentemente ocorrem uns genocídios caninos por parte da prefeitura do campus, no Saúde os cachorros Folha e Bolinha, que vivem do lado da guarita dos seguranças do Instituto de Psicologia, quando ameaçados de remoção, são protegidos por vigorosa reação dos estudantes, seguranças e demais funcionários, contando com cartazes plastificados (4) pelo campus e até abaixo-assinado (sim, eu assinei essa porcaria).

Também há a prática comum a todos os estudantes e professores, e talvez a todos os gaúchos, de achar que a UFRGS é o centro do universo, ou, na melhor das hipóteses, querer saber quão perto a UFRGS está do centro do universo (5)

Não pretendo agora fazer um estudo detalhado dos hábitos peculiares dos Urguianos, até por que não tenho tempo para isso. Entretanto, esse é um assunto que me fascina, essa diversidade comportamental e cultural que se cria dentro de uma única universidade. Talvez um dia eu possa falar mais disso, seja aqui, ou num mestrado ou doutorado.







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(1) O que não é grande coisa, já que os bifes são bem nervosos. Nem as facas novas que servem até pra sangrar porco dão conta do recado.

(2) Também é comum abreviar o nome dos cursos, como Psicologia para Psico, Biologia para Bio e Jornalismo para Jornal. Mas isso acontece em qualquer faculdade do Brasil.

(3) E logo surgiram lendas de como aqueles que compraram essa camiseta morreram de forma misteriosamente dolorosa.

(4) Os cartazes eram tão bem feitos que pensamos seriamente em roubar um e expô-lo em um Salão de Iniciação Científica para ver no que daria.

(5) O centro do universo é a USP. A UFRGS está logo ali do lado, contudo.