segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Momentos de Crise

Tive a oportunidade de ver este final de semana uma crise social em pequena escala. Não foi nada prazeiroso, já que sua causa fora um acidente. Ainda assim, foi um fenômeno sociológico muito interessante.

Este sábado, dia 23 de fevereiro, estava eu e alguns amigos do tempo da tropa sênior acampando por nossa própria conta e risco (coisa que sentimos na pele mais tarde aquele dia) em uma chácara emprestada por um colaborador do meu antigo grupo escoteiro. Um de nós levou sua bicicleta, equipada com suspensão à ar nas duas rodas (o que custou pelo menos dois mil reais), e que ele usa em competições de rally de bicicletas ou coisa parecida. Para que a brincadeira ficasse mais divertida, montamos uma rampa de saltos, e ficamos saltando de bicicleta e vendo quem ia mais longe, mais alto ou caia da forma mais engraçada (fiquei em segundo lugar nessa categoria). Foi com essa porcaria que começou toda pendenga.

Como quase todos tinham feito seus pulinhos, começamos a incentivar quem não tinha pulado ainda. Os saltos naquela rampa eram de simples execução, mas era necessário prestar atenção à alguns fatores: a velocidade devia ser alta para não cair de boca no chão, e deveria se tomar cuidado para saltar no meio da rampa, pois nas laterais o risco de acidentes era maior. Eu ignorei estas variáveis e tomei um belo tombo por cima de uma plantinha protegida por um cano de PVC, o que me rendeu algumas escoriações bem bonitas. Mas não fui o único nem o último a tombar naquela joça, e não havia motivos para acreditar que isto iria nos causar transtornos.

Mas causou.

Um de nós caiu de lado, e (presume-se que) bateu a cabeça. Na hora foi só riso e deboche, pois ele se levantou e conversou novamente - dois comportamentos que indicam que tudo está bem. Ele também cortou a perna na correira da bicicleta, mas não parecia ser motivo para preocupação. Mas depois de algumas horas, esse companheiro começou a reclamar de dores de barriga, o que foi, sim, considerado um motivo bom o suficiente para uma parada no hospital. Mas no caminho, ele apresentou outros sintomas muito piores que só reforçaram a idéia de levá-lo: vômitos, tontura, desorientação, perda da coordenação motora e dos sentidos (visão e audição, principalmente).

Identificamos um problema, e o levamos para o hospital rapidamente. Os pais do guri (ele é menor de idade) não teriam do que reclamar de nossa amizade, certo? Quem dera. Quando foi explicado o acontecido, a mãe pensou que tivéssemos embebedado ele e o obrigado a andar na bicicleta, fazendo com que ele sofresse fatal acidente. Mas não parou por aí, pois ela ligou para os pais e mães de todos que ela soubesse que estavam lá acampando.

Começou um período de tensão, pois a qualquer momento a mãe de alguém poderia ligar, querendo saber o que estava acontecendo. Normalmente isso não é problema: basta mentir. Mas desta vez, por causa de uma burrada nossa, um guri poderia ficar com seqüelas cerebrais e nunca mais ser o mesmo.

Naturalmente, alguns estavam mais apavorados que os outros. A primeira coisa que foi feita depois de ficarmos sabendo que o guri estava no hospital e a mãe dele estava sedenta por nosso sangue foi desmontar a rampa. Enquanto eu e um amigo meu, também estudante de Psicologia, tentávamos chegar a um diagnóstico, os outros ou faziam piadas ou discutiam e se desesperavam. Por mais de mau-gosto que as piadas podiam ser (e eram) elas mantinham o nível de tensão mais baixo.

O dono da bicicleta era, de longe, o mais desesperado. Primeiro, porque ele trouxe a bicicleta para o acampamento apesar das repreensões da mãe, que disse que ele só levaria aquela porcaria para fazer baderna. Segundo, porque a relação entre os dois (mãe-filho) já estava um tanto abalada por causa das festinhas que ele ia de noite, e fizeram a mãe perder quase toda a confiança nele, e ele sabia. Estava com medo de perder o que ainda restava.

Por causa desse medo, ele agiu de forma impulsiva e irracional, e falou bobagens sobre o guri no hospital que, apesar de ditas com veemência, eram insinceras. Mesmo assim, ele irritou outro de nós, que chegou a soqueá-lo pelo que disse. Ele estava tão aterrorizado com a possibilidade de sua mãe ligar para ele e dizer que ele teria que voltar para casa imediatamente que, quando dois amigos nossos lhe telefonaram para saber onde era a chácara em que estávamos acampados, ele foi incapaz de identificar suas vozes.

Mantive a cabeça fria, e enquanto observava o desenrolar dos fatos como um etólogo observaria um animal, tentei acalmar os ânimos de quem estava lá, especialmente do dono da bicicleta. Tive um sucesso limitado, graças ao pensamento racional e ao sangue-frio que exibi, além da (acredito eu) empatia que transmiti para os outros. Um sucesso limitado ainda é um sucesso, e todos ficaram mais calmos e até capazes de fazer troça da situação. Não falarei que tipo de piadas fazíamos, pois quem não vivenciou tal situação seria incapaz de compreender por que tamanho mau-gosto, mas digo mais uma vez que elas foram a válvula de escape da tensão acumulada em nós.

Próximo das 9 da noite, recebemos notícia de que o guri no hospital apresentava melhora, e já era capaz de se comunicar. Isso deixou todos ainda mais aliviados, e em condições de fazer um pouco de farra (isso foi um puta eufemismo, mas deixa assim).

Notas sobre o acontecido:
Uma situação como essa traz à tona esquemas de comportamento das quais, em condições normais de estresse, nunca tomaríamos conhecimento. O acidente e principalmente a possibilidade de seqüela em um de nós, apesar de ter-se provado falsa até o momento, mostrou o despreparo emocional de muitos de nós para lidar com situações carregadas de emoções fortes e riscos, pois era visível a desunião que reinaria, se não fosse o esforço de alguns poucos para acalmar a todos e pensar de forma coerente. Acho improvável, mas se eu e/ou Grillo (o outro protopsicólogo, que deu o diagnóstico mais acurado possível naquela situação) não tivéssemos ido para o acampamento, talvez ele tivesse acabado muito mais cedo do que o esperado.

Pelo que pude observar, o desespero da maioria não tinha origem na possibilidade de seqüela, como antes disse, mas na culpa e no medo das conseqüências que isto teria para eles próprios. Não estou dizendo que ninguém estava preocupado com o guri no hospital, mas que esta era uma preocupação secundária. O dono da bicicleta é o melhor exemplo disso. Com certeza ele estava preocupado, e pensando com apreensão se o acidente deixaria o nosso amigo permanentemente com problemas mentais, mas sua maior preocupação era, de fato, como sua mãe iria reagir diante disso e o que aconteceria com ele e sua bicicleta. Questiono a honestidade do indivíduo que socou o dono da bicicleta, que disse estar indignado com a atitude dele perante uma vida humana, que acredito, estava tão mais preocupado com o próprio destino do que com o de quem estava no hospital, apesar de afirmar o contrário.

Pesquisas em Psicologia Comportamental e em Logoterapia demonstraram que pacientes em risco ou estado terminal frequentemente utilizavam-se do humor como estratégia de enfrentamento (coping strategies), e que tal atitude deve ser encorajada, por aliviar a tensão e o medo destes. Isto foi mais uma vez comprovado pelo nosso acampamento. O humor negro, escrachado e de extremo mau-gosto, tornou-se a estratégia de enfrentamento de muitos de nós, que não podíamos fazer nada a não ser esperar. Aqueles que faziam piada da situação mantiveram-se calmos e não agiram impulsivamente, ao passo que expressavam preocupação e mantinham-se sérios (babacas...) ficaram apavorados, e agiram impusiva e irracionalmente.

Está tudo bem agora, pois o guri que sofreu o acidente já está em casa e bem, o suficiente para entrar no MSN e colocar uma mensagem pessoal que dava exatamente estas informações. Baseado em minhas observações, concluo que o acidente e a internação no hospital não foram os motivos que levaram muitos de nós ao ponto do desespero, mas a histeria coletiva da maioria de nossas mães, que trocaram telefonemas apocalípticos e acusações (disseram que tínhamos um "arsenal de bebida" conosco) contra nós e nosso acampamento. Se a mãe do acidentado não tivesse começado sua campanha de terror, nenhum de nós teria ficado muito nervoso.

A grande maioria de nós está despreparado de forma preocupante para enfrentar situações estressantes. E quando digo "nós", não me refiro apenas aos que estavam lá no acampamento, mas também aos pais e as mães que deixaram desespero falar mais alto. É claro que é difícil para uma mãe ver seu filho numa cama de hospital, incapaz de falar uma frase que faça sentido e vomitando todos os fluídos corporais possíveis, mas devemos ter em mente que espalhar o próprio terror para os outros em redor não torna a situação mais fácil de enfrentar - oh ho ho, bem pelo contrário, é só arranjar sarna para se coçar. Quando as acusações contra nós começaram a aparecer, as defesas e justificativas vieram logo em seguida. Felizmente, alguns de nós pensaram de forma racional, mantiveram o auto-controle e ajudaram os que não conseguiram fazer o mesmo a recuperar a calma perdida.

Este acidente foi uma crise social em miniatura, e posso dizer que foi mais um treino para situações de risco do que uma situação de risco propriamente dita. Mas as reações das pessoas demonstrou que a necessidade um melhor prepararo emocional é urgente.